Na sociedade da informação e do conhecimento, o associacionismo é uma filosofia sociocultural e socioeconómica que assenta na topologia das redes e plataformas descentralizadas e distribuídas (1), numa ação coletiva e colaborativa interpares (2), na forte interação entre comunidades online e comunidades offline (3) e na provisão de bens e serviços comuns (4), de acordo com uma aceção ampla de bens e serviços comuns, materiais e imateriais.
Nesta transição do associativismo convencional para o associacionismo da era tecno-digital é feito um apelo à mobilização das quatro inteligências que informam a inteligência humana, a saber, a inteligência racional (IR), a inteligência natural (IN), a inteligência emocional (IE) e a inteligência artificial (IA).
Se a inteligência humana for capaz de mobilizar, compartilhar e fazer convergir estas quatro inteligências estaremos muito mais próximos de uma narrativa consistente sobre o associacionismo das redes distribuídas, a estratégia crowd (crowdsourcing, crowdlearning, crowdfunding), a formação das comunidades offline e a provisão dos comuns como produto da lógica da ação coletiva.
Ora, justamente, a infraestrutura do ciberespaço e o universo cognitivo da cibercultura conduzem-nos a um tipo de inteligência compartilhada que está cada vez mais distribuída pelo território.
Existe, no entanto, um défice de cultura partilhada, colaborativa e solidária enraizada na sociedade em geral que é preciso preencher rapidamente. Ninguém sabe tudo e só todos sabemos alguma coisa.
Precisamos, portanto, de reduzir esse défice de cultura partilhada, colaborativa e solidária se quisermos sustentar uma ética do bem comum de suporte a um capitalismo popular de pequenas plataformas e aplicativos que esteja para lá do simples negócio digital.
Nunca, como agora, precisámos tanto do consenso dos comuns para orientar na boa direção os dispositivos digitais, a colaboração interpares e a ação coletiva, a interação entre comunidades online e offline e a provisão de bens comuns.
Dito isto, vejamos algumas linhas de abordagem mais utilitária desta nova lógica de ação coletiva e produção de bens comuns:
– Em primeiro lugar, há, ainda, muitos ângulos mortos entre a economia dos bens públicos, a economia dos bens privados e a economia dos bens comuns; esta questão dos ângulos mortos e das suas externalidades (1) assumirá uma relevância crescente e será, seguramente, um dos temas fortes no debate público dos próximos anos, sobretudo no que diz respeito à natureza da coabitação e política regulatória entre bens públicos (estado), bens privados (mercado) e bens comuns (comunidade);
– Em segundo lugar, os novos dispositivos colaborativos da sociedade digital favorecem a solidariedade comunitária e a inovação social (2) e são muito úteis no combate à pobreza e desigualdades, a saúde pública e o envelhecimento ativo; este é o momento para desindustrializar a misericórdia, a pobreza, a saúde pública e a velhice, mas, também, para promover a economia da inovação social e do emprego em nome da dignidade da pessoa humana e de uma ética dos comuns;
– Em terceiro lugar, os novos dispositivos da sociedade tecno-digital, sobretudo, os sistemas de informação geográfica e a robótica avançada favorecem a ecologia dos recursos naturais e as práticas de economia circular (3), ou seja, é toda a cadeia de valor do sistema produtivo que fica sob observação, poisna natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma;
– Em quarto lugar, a associação virtuosa entre o património e a paisagem, de um lado, a arte e a cultura, de outro, tem um impacto fundamental no nosso modelo de linguagem, cultura geral e interpretação da realidade (4) e, no final, traduz-se em melhores instrumentos de ordenamento do território, melhores relações cidade-campo, melhor qualidade do ambiente urbano e uma utilização mais criteriosa do espaço público por todas as gerações;
– Em quinto lugar, os novos dispositivos colaborativos da sociedade tecno-digital favorecem a promoção e a proteção do emprego intermitente (5) que tenderá a crescer nos próximos anos com a revolução da inteligência artificial, a pluriatividade e o plurirrendimento e a proliferação de novos modelos de negócio;
– Em sexto lugar, sem uma promoção eficaz e eficiente da literacia tecno-digital e mudanças profundas no ambiente escolar e universitário (6) não será possível pôr em prática as quatro componentes deste novo associacionismo das redes e plataformas, tal como referimos logo no início.
Aqui chegados, é preciso, no entanto, quenão se confundam dois planos analíticos. Por um lado, há já inegáveis progressos colaborativos e inteligência coletiva muito diversificada em ambientes empresariais modificados e simulados, em espaços comuns de criação artística, investigação científica e inovação social e em territórios-rede das comunidades intermunicipais e associações de desenvolvimento local, em resultado da organização de comunidades online e redes e plataformas colaborativas e participativas.
Todos eles desenvolvem formas de inteligência coletiva e aplicações/funcionalidades muito diversas que importará aprofundar e monitorizar.
Por outro lado, é forçoso reconhecer que, numa sociedade que envelhece e declina socio-demograficamente, estes progressos ainda não se traduzem em melhorias substantivas e estruturais de natureza colaborativa na sociedade política em geral.
Desde logo, na promoção da literacia digital e na proteção jurídica do emprego intermitente. Depois, na regulação de algumas manifestações hostis no espaço público, seja no universo corporativo mais convencional ou mais agressivo das redes sociais que podem arrastar consigo a tribalização e a violência de comportamentos na rede.
Nota Final
Vivemos numa sociedade complexa e contingente que exige um pensamento muito mais crítico e transdisciplinar.
Neste sentido, precisamos de evitar, a todo o custo, que haja uma clivagem entre os universos da natureza, cultura e política.
A cultura, sempre mais generosa, pode ajudar a política, sempre mais calculista, a adquirir essa visão de futuro e, assim, a renovar a esperança política.
Por isso, é essencial que deixemos de ser espetadores passivos para ser, também, atores proativos nos espaços públicos e comuns da sociedade da informação e do conhecimento.
Se assim acontecer, a cultura, nos seus vários patamares, será arrancada ao mundo corporativo da cultura, aos seus profissionais, gestores e instituições, para ser reposicionada no espaço público comum como objeto político de primeira linha a ser debatido por todos.
Finalmente, o acesso à sociedade digital, sobretudo, após a digitalização de serviços públicos essenciais, é, numa sociedade que envelhece rapidamente, um autêntico grito de alerta contra a violação de um direito fundamental, razão pela qual a grande prioridade para esta década deve ser o combate contra a desigualdade de acesso à educação tecnológica e digital que devemos promover através de um plano de literacia geral e especializada e, também, pela defesa de uma ética prática do cuidado, pela causa dos bens comuns e compartilhados ao serviço dos cidadãos mais vulneráveis.