Vivemos o tempo das grandes transições, um tempo de policrise, risco sistémico e efeitos externos muito assimétricos.
Na aldeia global, tudo está em todo o lado ao mesmo tempo. A colisão parece iminente. Por um lado, assistimos em direto à queda das instituições internacionais da ordem liberal e multilateral do pós-guerra, por outro, à ascensão das Grandes Tecnológicas e dos Grandes Fundos, uma aliança entre o capitalismo tecnológico e o capitalismo financeiro de que Sillicon Valley é o exemplo mais eloquente. Eis alguns tópicos que nos permitem assinalar este tempo de rutura.
- O ator prevalece sobre o sistema, os acontecimentos prevalecem sobre a ordem.
- Somos seres migrantes em viagem para o ciberespaço, para a colónia virtual.
- Muitos acidentes em viagem, o trabalho intermitente, uma categoria líquida.
- A revolução tecno-digital e o défice de literacia, a desigualdade do acesso.
- A realidade e a verdade, a dúvida sistemática, a pós-verdade.
- A bolha, a expropriação da linguagem, o free raider e a violência gratuita.
- Pegada digital, o excesso de normativismo digital e algorítmico.
- A reação populista e autoritária, a ingovernabilidade das democracias liberais.
- A guerra das inteligências e a crise estrutural das ciências humanas e sociais.
- A crise do agir comunicacional, a esfera pública capturada pele esfera mediática.
Chegámos a um verdadeiro ponto de rutura na aldeia global em que vivemos. Os regimes de liberdade, igualdade e fraternidade da democracia política liberal estão em risco, cada vez mais ingovernáveis devido à radicalização do espetro político-partidário que se deixou contaminar pelos regimes não liberais – autocracias, teocracias e totalitarismos – que não cumprem a mesma lógica de ação coletiva liberal e institucional.
Sabemos que a modernidade segmentou, especializou, profissionalizou, em primeira instância a filosofia, depois o saber e a ciência, mas também sabemos que há limites para essa especialização, que gerou muitas zonas cinzentas e externalidades negativas sobre a sociedade e a natureza.
Hoje, na aldeia global e perante o risco sistémico iminente, é imperioso reagrupar, recompor as competências, refazer as mediações e promover um regresso aos bens comuns, o terreno de eleição da natureza, da cultura, da ciência e da política.
Vejamos algumas boas razões para o renascimento da cultura e sua repolitização.
Em primeiro lugar, para reparar esta desconexão necessitamos de um horizonte utópico cultural, de uma narrativa cognitiva e sentimental, que nos ajude a contrastar a realidade que vivemos com aquela que imaginamos, enquanto critério crítico de avaliação e mudança.
Em segundo lugar, estamos novamente à beira de uma tragédia dos comuns e face a uma desigualdade que cresce todos os dias, só a cultura pode constituir-se em uma espécie de caixa de ferramentas para lidar com os problemas existenciais, uma fábrica de ideias, de imaginação e criatividade, um novo reportório de opções, um esquema de cooperação cognitiva de largo espetro, da teoria e da criação ao impacto social.
Em terceiro lugar, vivemos um momento de desconfiança em relação às grandes instituições culturais que são pesadas e burocratizadas e deixam nas margens muita imaginação e criatividade; se não preservam e promovem a diversidade as instituições culturais acabam por ser disfuncionais e esta desconexão precisa de ser corrigida.
Em quarto lugar, é preciso ultrapassar a fronteira entre profissionais de um lado e público recetor de outro, pois o público é um corpo plural com diferentes graus de intervenção ativa e processos e interações que ocorrem de múltiplas maneiras; ao mesmo tempo, é preciso contrariar a desinstitucionalização da cultura pois é necessário recuperar o sentido de plataforma colaborativa, de cooperação multiterritorial e as pontes intergeração das instituições culturais, assim como repolitizar a sua função social.
Em quinto lugar, sabemos como a funcionalização da cultura, a sua setorização, mantêm a educação e os media separados da cultura; tem de existir cumplicidade entre todas as áreas para haver uma valorização da cultura e maior capacidade crítica dos cidadãos, ou seja, precisamos todos de beber esse caldo de cultura que junta o nosso lugar no mundo, o significado das nossas experiências, os valores e compromissos que regem as nossas relações com os outros, a nossa organização social e a relação com a natureza, que se interroga sobre os nossos limites, os da linguagem e os do próprio conhecimento.
Assim será, pois quero crer que as ciências humanas e sociais assumirão de novo a sua função primordial de regulação entre o ator e o sistema.
Obrigado por fazer parte desta missão!