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Porquê ler «Um, Ninguém e Cem Mil» hoje?

«Quando uma pessoa vive, vive e não se vê. Conhecer-se é morrer».

Há livros que não nos oferecem respostas, mas escavam cá dentro de tal forma que é impossível sair deles intacto. Um, Ninguém e Cem Mil, o último romance de Luigi Pirandello, é assim. Publicado em 1926, o próprio autor considerou esta obra o pináculo de tudo o que escreveu — e não é difícil perceber porquê.

A história começa com um comentário inocente da esposa do protagonista, Vitangelo Moscarda, que lhe aponta uma ligeira assimetria no nariz. Um pormenor banal, inofensivo, mas que funciona como gatilho para uma implosão: se o meu nariz não é como eu pensava… então, o que mais em mim está sujeito à visão dos outros? E, acima de tudo, quem sou eu afinal?

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Num efeito borboleta, uma mera observação conduz a um mergulho radical na identidade de Moscarda — um sujeito condenado à loucura ou ao Nirvana?

Esse instante de dúvida cresce. Moscarda mergulha numa espiral de questionamento que desconstrói não só a sua imagem pública mas também a sua noção do «eu». Percebe que cada pessoa o vê de uma forma distinta, que ele é, na verdade, «cem mil» versões diferentes — e nenhuma delas verdadeiramente sua. No fim de contas, será ele alguém? Ou ninguém?

Com uma escrita afiada, por vezes sarcástica, trágico-cómica, filosófica e sem concessões, Pirandello desmonta a ideia de um «eu» sólido e coerente. Um livro sobre identidade numa perspetiva freudiana, lembrando também os heterónimos de Fernando Pessoa ou os questionamentos de Kafka.

A narrativa é feita de fragmentos, de vozes interiores, de silêncios que sopesam tanto quanto as palavras. O romance é menos sobre a trama e mais sobre a viagem interior — o solipsismo, a angústia de perceber que talvez sejamos apenas um reflexo dos olhares que nos cercam.

Mas também sobre relações (o que nós vemos nos outros é uma projeção do outro em nós?), comunicação (o que eu digo não é o que o outro ouve, mas sim o que ele quer ouvir de uma das minhas versões que não sou eu?), pressões, convenções e crítica social (eu não quero ser a pessoa que a sociedade quer que eu seja; a minha idade e o meu estatuto definem quem eu sou?).

Ler Um, Ninguém e Cem Mil é fitar um espelho que se parte em mil estilhaços — e perceber que cada fragmento nos mostra uma face diferente: a identidade, explorada a partir do absurdo, não se apresenta como um objeto concreto. É um livro desconcertante, atualíssimo e que fala diretamente ao mundo hiperexposto e hiperfragmentado em que vivemos. Uma leitura que não termina na última página; uma leitura incomodativa e fascinante.

«Preparava-se, naquela sala, uma interessante conversa entre aqueles oito que se julgavam três».

Recomenda-se a quem não tem medo de se perder um pouco — e quiçá encontrar algo no vazio.

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