Na vitrina, posam obras de grandes escritoras: Natália Correia, Maria Teresa Horta, Clarice Lispector. Do interior, emana um cheirinho a café, acabado de fazer. Algumas pessoas entram, outras saem. Vieram espreitar as prateleiras recheadas de livros, ou beber o galão da tarde.
Não, não estamos em Lisboa. Estamos em Odemira, no coração desta vila – tão interior quanto litoral –, onde abriu a Mirabolante: livraria-café onde há muitos livros para degustar (e não só). Sílvia Laureano Costa, uma das fundadoras, conta como a livraria surgiu, como parte de um sonho, também ele, “mirabolante”.
O conceito de livraria-café não é recente, mas é a primeira vez que alguém se aventura a replicá-lo numa região deserta de livreiros como o Alentejo, onde a livraria mais próxima está localizada em Évora, a 160 quilómetros de distância, ou em Sines, já no distrito de Setúbal, a 60 km.
É também precisa alguma coragem, numa altura em que a venda de livros online e os grandes retalhistas ou grupos editoriais, como a Porto Editora ou a Bertrand, imperam no negócio livreiro: hoje sai mais barato comprar online, ou diretamente a uma editora, do que comprar um livro numa livraria.
Tudo começou quando Sílvia Laureano Costa e Bruno Rodrigues, de Lisboa, ambos doutorados em Literatura, descobriram Odemira há onze anos. Apesar do apoio financeiro, do programa “Odemira Empreende” – iniciativa da Câmara Municipal que visa a promoção do desenvolvimento económico local –, foi apenas depois de conhecerem, em 2023, Teresa Freitas e António Falcão (que fora livreiro em Macau), casal já a viver no concelho, que o sonho de uma livraria independente em Odemira se tornaria uma realidade.
“Abrimos no último dia de Novembro [30 de Novembro de 2024], e tivemos logo duas apresentações públicas ainda com as paredes por pintar – uma com a Luísa Sobral e outra com o ativista britânico Rob Hopkins. Simbolicamente, depois viemos a descobrir que era o dia dos livreiros, mas também o dia em que Fernando Pessoa morreu”, conta Sílvia, que cumprimenta com um sorriso quem entra.

Para alguns, esta é a segunda visita do dia. Para outros, é a primeira vez que entram. Muito aproximam-se para felicitá-la pelo novo espaço – outrora uma Remax, mais tarde uma loja-fantasma que fechara – e que agora veio dinamizar o centro da vila, a Praça Sousa Prado, anteriormente pouco movimentada.
“Estávamos cansados da agitação da cidade, e a livraria era um sonho de já algum tempo, desde quando eu ia para os cafés estudar, ainda durante a faculdade. Foi nessa altura [início dos anos 2000] que as FNAC vieram difundir isto da livraria-café em Portugal”, explica, acrescentando que a ideia de uma livraria independente em Odemira sempre foi (e ainda é) “um pouco utópica”, dada a descrença inicial pelo lugar, “porque nada se passa em Odemira”, mas também pelos “sabores e dissabores” que o mercado livreiro independente acarreta, nomeadamente o fenómeno da concorrência desleal, que obriga muitas livrarias independentes a fechar.
As que abrem pelo país contam-se pelos dedos, e algumas fazem parte da Rede de Livrarias Independentes (ReLI), como é exemplo a Mirabolante. A ReLI é uma associação de apoio mútuo composta por livrarias de todo o território português sem ligação a redes e cadeias dos grandes grupos editoriais e livreiros.
“No fundo, isto é um negócio ingrato, porque o grande concorrente é o online. Já sabíamos que o mercado livreiro é agressivo e que as editoras não querem saber das livrarias ao fazerem descontos gigantes, superiores ao que nos fazem a nós, mas agora sentimos na pele e é duro saber desta realidade. Eles já não precisam da fisicalidade de uma livraria para existir”, lamenta.
Ainda assim, Silvia diz, sorridente, que “não estavam à espera de tanta afluência”, o que é um bom presságio.

Valorizar o local
Ainda não é hora de ponta, mas, atrás do balcão da cafetaria, chega António Falcão – sócio e um dos fundadores da Mirabolante – que hoje está responsável por servir os cafés e atender os clientes, que vêm à procura, principalmente, do café biológico ou das doçarias regionais, como as alcôncoras de Amoreiras-Gare, servidas às quartas-feiras, ou as sericaias de Elvas, às quintas.
Todos os produtos são de origem local, até o artesanato, que enfeita as paredes e as estantes: cerâmicas, pinturas, alfinetes feitos em lã, bolsas costuradas à mão… “Temos uma grande preocupação em ter coisas da região, não só literatura. Queremos dar palco a artistas locais”, conta Sílvia, que explica que uma das paredes do espaço será dedicada inteiramente à exposição de trabalhos feitos por artistas da região, de modo a ser, para além de uma livraria-café, também um “espaço de encontro de ideias, culturas e saberes”.
Na Mirabolante, livros não faltam. Vendem-se em língua portuguesa, mas também em alemã, espanhola ou inglesa, face à maior procura por parte da comunidade estrangeira da região, que esperam “que cresça”.
É no centro da livraria – “na Ilha de Babel” – que se pode encontrar este espaço dedicado à literatura portuguesa traduzida, onde autores como Fernando Pessoa e Mia Couto podem ser lidos em bilingue, publicações de pequenas editoras como a Dilúvio ou a Shantarin, especializadas na publicação de obras nesta modalidade.
Chegam igualmente as últimas novidades, como o livro “A Vegetariana”, de Han Kang, Prémio Nobel da Literatura, ou o livro sobre a cultura alentejana “10 anos de Cante Alentejano”, de Ana Baião, recentemente publicado, e que mereceu uma sessão de apresentação pela Mirabolante no passado dia 8 de março.
Ainda sobre o Alentejo, “há destaque” para o “Guia ilustrado para observação de aves em Odemira”, que reúne 242 espécies da avifauna local.
Além de uma vasta oferta de literatura infantojuvenil, trazida por editoras como a Planeta Tangerina, pois “é de pequenino que se torce o pepino”, também há um grande enfoque na literatura sobre temas da ecologia, da natureza e das questões ambientais locais.

“São preocupações que nos movem, daí termos trazido [na primeira apresentação pública], o educador e ambientalista britânico Rob Hopkins e o seu livro “”E se…?”, conta Sílvia. Finalmente, e incutindo o gosto pela leitura e o conhecimento, numa região onde a oferta cultural ainda é limitada, a Mirabolante também criou um espaço para os “mortinhos por serem relidos”, ou aqueles livros que procuram uma segunda casa.
“Começa pelas pessoas que doam os livros que não querem mais ler. É uma forma de democratizar a leitura em termos de preço”, explica. Os preços destes livros variam entre os 4 e os 9 euros.

Feira do Livro “Revolução à Letra”, no âmbito das comemorações do 25 de Abril
Em Abril, a Mirabolante vai sair às ruas com o apoio da Câmara Municipal de Odemira, numa iniciativa conjunta para celebrar os ideais de Abril, um ano após o seu cinquentenário.
O objetivo é apresentar ao público livros sobre o 25 de Abril e a ditadura do Estado Novo.













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