A economia criativa (EC) em sentido amplo debruça-se sobre um complexo de ativos repartido entre ativos do património (1), materiais e imateriais, ativos do conhecimento (2), ciência e tecnologia, ativos da cultura (3), artísticos e culturais, ativos da recreação (4), lazer, desporto e turismo.
Este conjunto de ativos, as suas conexões e o seu sistema operativo, são um input fundamental para a definição das condições de formulação e realização da estratégia de desenvolvimento dos territórios ou áreas de baixa densidade (ABD).
Vejamos alguns aspetos relevantes desta conexão fundamental entre economia criativa e economia produtiva.
1) A EC é um racional de diferenciação e competitividade e, portanto, uma questão de sobrevivência para as ABD; nesta linha de pensamento, a EC leva-nos do máximo de liberdade e diversidade até à racionalização própria das cadeias de valor.
2) A EC tem um valor próprio, imaterial e intangível, que transmite, sob múltiplas formas, às atividades produtivas convencionais, ou seja, compartilha valor específico com a economia produtiva.
3) A EC gera novas dinâmicas colaborativas e mecanismos de sociabilidade que vão buscar à exclusão social mais atores criativos e projetos de marginalidade; basta, para tal, manter os canais abertos à colaboração entre atores e agentes e dar uma prova real de confiança nessas redes de colaboração.
4) A EC olha para a cidade inteira e não para algumas parcelas mais críticas da cidade, ou seja, a EC pode transformar os principais estrangulamentos da cidade em soluções criativas; do mesmo modo, a EC promove a redução das desigualdades sociais para favorecer a criatividade e o espírito de iniciativa.
5) A EC incentiva-nos a mudar o nosso olhar sobre a arte e o espírito dos lugares, se quisermos, a promover uma outra espacialização da cultura, a reinventar o espaço público urbano e a dar uma 2ª vida aos equipamentos e infraestrutura da cidade.
6) A EC incentiva-nos a reinventar o conjunto de relações cidade-campo, em particular, tudo o que diz respeito às infraestruturas verdes, às internalidades da economia circular e à arquitetura biofísica do sistema agroalimentar de base local.
7) A EC incentiva-nos a preparar o hardware e o software dos grandes eventos e a explorar o impacto das suas conexões, em especial, os impactos da grande constelação turístico-cultural que está associada à economia produtiva local e regional.
8) A EC promove um ambiente criativo e novas funcionalidades para o espaço público, ou seja, temos à nossa frente a oportunidade de utilizar e adaptar antigos equipamentos e infraestruturas e destiná-los para a promoção de programas de envelhecimento ativo, a formação artística e cultural dos jovens e o empreendedorismo dos futuros empresários.
9) A EC promove e orienta as políticas públicas para a formação de um ecossistema criativo estruturado para onde convergem organizações como o centro partilhado de recursos digitais, as unidades de investigação e desenvolvimento, a associação de jovens empresários e o hub das indústrias culturais e criativas.
10) A EC dedica uma atenção especial aos sistemas produtivos locais (SPL) da 2ª ruralidade que são dominantes nas ABD; o seu particular metabolismo e as hiperligações que mantêm com os ativos da economia criativa são fatores decisivos para o desenvolvimento destas regiões.
Aqui chegados, as propriedades de um SPL ajudam-nos a perceber melhor as relações entre economia criativa e desenvolvimento territorial de uma ABD.
Em primeiro lugar, o SPL de uma comunidade intermunicipal (CIM), por exemplo, é uma economia de proximidade e baixa pegada ecológica. Falo de uma pequena economia de aglomeração que inclui a agricultura familiar, as associações e cooperativas de produtores, os circuitos curtos de comercialização, as pequenas redes de distribuição, os mercados locais, os contratos de institutional food, todos importantes contributos para reduzir a pegada ecológica.
Em segundo lugar, o SPL é uma economia de produtos limpos, sãos e justos. Limpos, porque devem ter baixa intensidade agroquímica, mas limpos, também, porque devem ser justos e fazer parte do comércio justo. No primeiro caso, falamos em modos de produção agroecológicos nas suas várias modalidades. No segundo, estamos a privilegiar produtos que respeitam as regras de concorrência em vigor.
Em terceiro lugar, o SPL é, ou deve ser, uma economia de produtos com denominação de origem. Estes produtos integram recursos endógenos com elevado valor acrescentado, logo, é imprescindível que a investigação económica e ecológica diga de que forma e com que intensidade devem os recursos genéticos e biológicos ser utilizados pela produção. A biodiversidade é o derradeiro recurso de um território e recuperar as sementes perdidas e as tecnologias tradicionais é criar identidade e motivação territorial para as iniciativas imprescindíveis à proteção de serviços de ecossistemas.
Em quarto lugar, o SPL é uma economia de baixa intensidade energética. A investigação eco energética deve providenciar informação pertinente sobre os vários sistemas combinados e descentralizados de micro geração, a sua viabilidade económica e a sua conexão com os recursos endógenos, onde se contam, também, os recursos agroflorestais. Os produtos SPL são produtos certificados por adotarem processos de transformação de baixa intensidade energética.
Em quinto lugar, o SPL é uma economia de baixa intensidade hídrica. A água é um recurso escasso com um custo de exploração crescente, por isso, é imprescindível reduzir o peso relativo deste fator na estrutura de custos da empresa agroflorestal e alimentar. Os objetivos a atingir são a poupança, a eficiência, a reciclagem e a recolha de águas pluviais. Os produtos SPL são produtos certificados por adotarem processos de transformação de baixa intensidade hídrica.
Em sexto lugar, o SPL é uma economia de baixo índice de mobilização do solo agrícola. Trata-se de reduzir os índices e os custos de mecanização, mas, também, de converter a agricultura convencional aos métodos agroecológicos de mobilização mínima e sementeira direta tendo em vista reduzir a exposição do solo aos fatores agressivos de diversa natureza. É um corolário do princípio de sustentabilidade e o suporte de vida por onde circulam os materiais e nutrientes necessários ao crescimento de agroecossistemas. Os produtos SPL são produtos certificados de baixa intensidade de mobilização do solo.
Em sétimo lugar, o SPL é uma economia circular de baixa entropia. Os produtos SPL devem ser produtos de ciclo fechado em que os resíduos são considerados internalidades do processo de transformação e incorporados no sistema produtivo corrente. Este sistema produtivo de ciclo fechado obriga a reconsiderar as opções tecnológicas realizadas, no sentido de maior proximidade com o funcionamento dos sistemas naturais do ecossistema onde se localiza. Do ciclo fechado faz também parte a produção de externalidades positivas sobre a economia local e a qualidade de vida das comunidades. Os produtos SPL são produtos certificados por adotarem processos de transformação com geração de internalidades e externalidades positivas.
Em oitavo lugar, o SPL é uma economia amiga do organicismo da paisagem global. Os produtos SPL respeitam a gestão global da paisagem, a variedade dos seus elementos, as funcionalidades e ligações do mosaico paisagístico às boas práticas dos agrossistemas. A paisagem é uma internalidade que deve ser devolvida à origem sob a forma de uma externalidade positiva, isto é, como paisagem de valor acrescentado que oferece, em boas condições, os seus serviços de ecossistema. Os produtos SPL são certificados por adotarem as boas práticas do mosaico paisagístico.
Em nono lugar, o SPL é uma economia que valoriza o capital social. Os produtos SPL são produtos com alta intensidade rede, isto é, são geradores de capital social. Falamos da criação de estruturas associativas, de relações institucionais, de medidas ativas de criação de emprego, de relações comunitárias e formação de mercados locais, de mobilização de jovens, enfim, de criação de fatores de atratividade para os respetivos territórios. Os produtos SPL são certificados por adotarem processos com elevada intensidade de rede e renovarem o capital social dos territórios onde ocorrem.
Em décimo lugar, o SPL é uma economia que valoriza o capital simbólico. Os produtos SPL são produtos com identidade, isto é, são portadores de atributos fundamentais do território e geram identificação e motivação pois são ou devem ser uma imagem genuína desse território.
Podemos ver ou ler a história local através dos produtos locais, por isso, os produtos locais são veículos de comunicação simbólica com o exterior da região, são, digamos, os embaixadores singulares de um território.
Os produtos SPL são produtos certificados culturalmente por incorporarem elementos simbolicamente relevantes e contribuírem decisivamente para a afirmação exterior de uma região.
Nota Final
Abordámos as principais características do sistema produtivo local. Como facilmente se compreende há uma grande diferença entre as condições de formulação do SPL/CIM e as suas condições de realização.
Além disso, para lá dos défices de conhecimento, precisamos de saber se existe, também, um défice emocional, ou seja, até que ponto um determinado território é um território-desejado que mobiliza suficiente entusiasmo para um projeto de futuro.
Se esse conhecimento e essa geografia sentimental não estiverem presentes, a inteligência racional e a inteligência emocional nunca se encontrarão para um grande projeto de futuro, isto é, não haverá inteligência coletiva territorial suficiente para reduzir os défices já conhecidos. Teremos de voltar ao assunto.
Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve