Os meses de Novembro e Dezembro eram, por norma, muito chuvosos no Algarve, com cheias frequentes e elevados prejuízos materiais, económicos, sociais e, por vezes, com perda de vidas humanas.
Na última década, têm sido muito secos, uma provável consequência das alterações climáticas, fazendo as folhas das amendoeiras rebentar antes da floração, como consecutivamente tem vindo a acontecer, logo no fim de Outubro, princípios de Novembro (o normal era em Fevereiro, após a floração), ou algumas herbáceas florirem várias vezes, inclusive no Outono e Inverno.
As temperaturas anormalmente altas, ano após ano, estão a causar diversas alterações, a que os ecossistemas reagem como se fosse Primavera e não Outono, por exemplo nas aves (com a nidificação a ocorrer em Novembro, ou as andorinhas dos beirais a não migrarem), nos répteis (que não hibernam, tornando-se comum encontrar osgas em Dezembro), ou nas árvores de folha caduca (esta cai cada vez mais tarde), entre outras modificações visíveis pelos campos e paisagens algarvias.
O aumento da frequência dos fenómenos meteorológicos extremos e com maior intensidade de destruição constitui também uma consequência do aquecimento global, provavelmente como já está a suceder com a seca que atravessámos e que irá culminar com outros períodos de intensa e anormal pluviosidade, como a que aqui nos propomos recordar, ocorrida há 130 anos.
«No Algarve, não pela impetuosidade dos ventos, mas pela quantidade de pesados e quasi contínuos aguaceiros, não há memória de um temporal que tantos prejuízos causasse, como o que se fez sentir desde 23 de Novembro até 5 do mez actual»: foi deste forma que o semanário olhanense «O Futuro», na sua edição de 13 de Dezembro de 1894, resumiu quase duas semanas de chuva intensa, que impedia a saída das habitações, naquele já longínquo ano.
Um outro jornal, «O Progresso do Sul», publicado quatro dias antes em Faro, sintetizava: «os abastados soffreram prejuízos consideráveis; mas os menos favorecidos da fortuna – a imensa maioria da população algarvia -, ficou reduzida a condições desgraçadíssimas, e grande parte a completa penúria», pelo que vaticinava: «a perda das sementeiras, e a destruição das árvores, representam um futuro de fome horrorosa para o Algarve!».
A imprensa nacional, como o diário «O Século», também fez eco do temporal e das suas consequências que atingiu, principalmente, o distrito de Faro. Apoiados neste último e em alguns jornais regionais propomo-nos viajar, no tempo, até ao Algarve de Dezembro de 1894.

A primeira notícia relativa à região surgiu em «O Século», na edição do dia 3, dando nota de graves inundações ocorridas na véspera, sendo que, em Faro, algumas casas «estão desmoronadas, procurando os moradores abrigo nas vizinhanças e hospedarias. As bombas de incêndios difficilmente conseguem fazer os escoamentos. Há muitos estragos».
Aberto à circulação, a 1 de julho de 1889, o caminho de ferro do Algarve também foi vítima da intempérie. A situação mais grave ocorreu à entrada de Faro, nas pontes de Marchil, onde a ribeira encheu e inundou os campos envolventes, submergindo a linha e arrastando o balastro.
Em consequência, a locomotiva do comboio de passageiros, que saíra de Lisboa às 16h30, ao atravessar o viaduto, mergulhou nas águas da ribeira, às 5h00 da madrugada, do dia 2 de Dezembro, provocando a morte imediata ao maquinista, ficando o fogueiro em perigo de vida, preso entre o carvão, os destroços e as águas, durante mais de seis horas, quando foi salvo.
Os passageiros apenas sofreram o susto. A noite cerrada impediu que o guarda próximo pudesse prevenir aquela fatalidade. O transbordo foi feito em lanchas.
Naquela madrugada, uma outra tragédia podia ter acontecido: quatro rapazes de Loulé, que tinham ido participar na orquestra do Teatro Lethes, no âmbito do festival dos estudantes que aí tivera lugar, quando «regressavam, de trem, á dita villa, a cheia, que cobria o leito da estrada, arrastou para fora d’esta o trem e cavallos ate alguns metros de distancia. O cocheiro foi cuspido da almofada, ficando mergulhado até ao pescoço. Os passageiros conseguiram salvar-se, trepando a uma árvore, onde se conservaram até ao romper da madrugada, sendo então socorridos», como noticiou o jornal «O Districto de Faro», a 6 de Dezembro.
Ainda na edição de «O Século» de dia 3, sobre Lagos, era publicado: «o temporal tem sido violento, chovendo torrencialmente. O mar está agitadíssimo. O vapor Gomes VI não poude effectuar a descarga». Parte do cais havia desmoronado, paredes e valados haviam caído, ocorrendo ainda a inundação de algumas casas.
Todavia, pior estava Tavira: «a inundação n’esta cidade, causada por uma continuada chuva, desde 26 do passado até hoje, é de tal ordem que não existe memoria de outra egual, attingindo alturas desmarcadas».
Em resultado, «o jardim, mercado, praça da Constituição, tudo está inundado, tornando-se impossível a passagem de um para o outro lado da cidade. Estão inundadas mais de 600 casas, elevando-se a água a mais de um metro. Há grandes prejuízos em mobílias e roupas, sendo os moradores obrigados a andar com as mulheres e filhos às costas para os transportarem para casa dos vizinhos».

Um dos edifícios que mais sofreu foi o de Costa Ribeiro, general inspetor de infantaria, um «dos mais abastados proprietários da província do Algarve», de acordo com o jornal «O Século».
Na Veneza algarvia, caiu parte do teatro, bem como alguns telhados. O Gilão transportava grande quantidade de árvores e outros destroços, encontrando-se a «cidade sobressaltada, cheia de susto».
Já em Santa Luzia haviam aluído duas casas e algumas paredes de outras, felizmente após os moradores se ausentarem.
Melhor sorte não conhecia Silves: «é grande a cheia na ria. A maior parte da cidade baixa está inundada. Receiam-se grandes prejuízos por continuar a augmentar a cheia».
Na edição do dia 4, o Algarve voltou a preencher as colunas daquele diário. O correspondente de Faro escreveu: «os prejuízos causados no Algarve pelas chuvas são verdadeiramente extraordinários, lançando na miséria muitas centenas de famílias. De 1 para 2, em Faro, durante 6 horas, o pluviómetro marcou 131 millimetros, o que é deveras anormal».
Em resultado, «todas as campinas, desde a ponta da Conceição, até ao rio, ficaram totalmente inundadas, cobrindo as aguas uma área de cerca de 3 kilometros!».
Caíram muros e muitas casas de campo, as sementeiras ficaram destruídas. Numa habitação próximo à ponte das Lavadeiras, a água subiu ao telhado, ficando os moradores toda a noite pedindo socorro em vão, pois só no dia seguinte foram salvos.
Em síntese, aquele jornal publicava que «os pobres habitantes das cercanias de Faro ficam na miséria. Urge acudir quanto antes áquelles infelizes».
«O Districto de Faro», na edição do dia 6, enumerou os proprietários mais atingidos na capital de distrito, bem como as principais ruas afectadas, como as do Bocage, Carreira e Alcaçarias. Muitos prédios em construção sofreram prejuízos assinaláveis, sem contar com os muros de quintais prostrados.
Por sua vez, em Monchique, «continua a violência do temporal, causando grandes inundações e, portanto, enormes prejuízos», o serviço de correio estava suspenso, enquanto a récita prevista para o teatro da vila fora adiada.
A linha férrea registou ainda danos junto à ponte de Quarteira e entre Sabóia e São Marcos da Serra, com o desmoronamento de um aterro e de um muro ao km 262. Ainda que, neste último caso, a circulação ocorresse a velocidade reduzida, ela foi mesmo suspensa entre Faro e Albufeira, sendo o transporte do correio entre estas localidades efetuado no caminho de ferro, mas por zorra e depois por estrada, por ambas as vias de comunicação se encontrarem destruídas, em determinados pontos. Também a linha telegráfica da ferrovia foi afetada numa extensão de 10 km, com os postes levados pela cheia.
No dia 5, as notícias do Algarve sucederam-se em «O Século». Num telegrama enviado de Faro, ainda no dia 3, refere: «a ponte de Alfarrobeira, na estrada de Loulé, próximo das azenhas, está abatida. A passagem em carro é impossível. São grandes os prejuízos em gados e sementes. Muros bastante resistentes estão em baixo. As estradas de primeira e segunda ordem estão cortadas pelas cheias».
Dadas as circunstancias a Câmara de Faro reuniu-se extraordinariamente, deliberando pedir ajuda à rainha D. Maria Pia, bem como ao ministro do Reino (hoje administração interna).

A 4 de Dezembro a ponte ferroviária da ribeira de Quarteira abria novamente à circulação, enquanto em Marchil se tentava carrilar a máquina, existindo transbordo.
Mas na estrada do litoral (a avó da EN 125) abatia a ponte de Boliqueime, sobre a ribeira de Quarteira, ficando cortada a ligação ao Barlavento, por a denominada ponte do Barão também ter sofrido danos e não permitir o trânsito.
Loulé teve novo destaque na edição de «O Século», do dia 6, com um balanço dos prejuízos: «as inundações causaram importantíssimos estragos n’este concelho; há prédios derrubados, muros abatidos, sementeiras perdidas, immenso campo alagado. Uma verdadeira desgraça».
A edilidade louletana na «impossibilidade de attenuar os enormes prejuízos e soccorrer os innumeros infelizes que perderam a maior parte dos seus haveres» e à semelhança do que havia sucedido em Faro, telegrafou à rainha D. Amélia pedindo auxílio para os inundados. A situação nas freguesias não era melhor, levando o correspondente a sintetizar «não há memmoria de tão horrível temporal».
Já a edição de 7 de Dezembro deu nota que parte de uma estrada municipal, em Faro, havia ruído, na sequência da cheia na ribeira de Marchil, impedindo o acesso à Arábia, Marchil, Vale das Almas e a Montenegro, tendo a Câmara enviado jornaleiros para o local, «30 homens e 40 mulheres, a fim de proceder ás precisas reparações». Ainda na cidade, a autarquia deliberou abrigar as vítimas, no antigo convento dos Capuchos.
Na Fuzeta, a intensa pluviosidade causou «grandes prejuízos nos campos, derrubando muitas habitações de gente pobre». Em Estoi, aqueles também foram avultados: «na praça Ossonoba cahiu uma casa totalmente», como noticiou «O Districto de Faro».

Já em São Bartolomeu de Messines: «as ultimas chuvas foram aqui, d’uma torrencialidade extraordinária», a localidade foi não só inundada, como ficou coberta de «immensas porções de entulho».
Houve ruas que ficaram «completamente cobertas de água, chegando a entrar em muitas casas e produzindo bastantes estragos, não só aqui, como também no resto da freguezia, onde as ribeiras encheram consideravelmente, levando com a sua impetuosidade alguns moinhos d’agua e desmoronando differentes moradas», conforme noticiou o «Progresso do Sul», a de 16 de Dezembro. A quantidade de entulho era de tal ordem que impedia o trânsito de veículos.
Por sua vez, sobre São Brás de Alportel, no dia 5 de Dezembro, publicou «O Século»: «os campos estão cobertos d’agua, que inundam muitas casas. Na horta do Vilarinhos uma família teve de se salva pelo telhado da habitação. Os estragos são enormes». Estes últimos refletiam a perda das hortas arrastadas pelas torrentes, das azenhas, dos valados destruídos e das sementeiras. Melhor sorte não haviam tido os aquedutos das estradas como o do «pontão do Cano [que] foi derrubado em parte, ficando o transito interrompido», enquanto a «calçada da fonte foi arrancada pela agua n’uma extensão de mais de 40 metros».
A 6 de Dezembro, a linha telegráfica do caminho de ferro ficava operacional, enquanto a locomotiva sinistrada apenas voltaria aos carris no dia seguinte. Para tal, ajudou uma acalmia da chuva entre os dias 6 e 9.
Ainda a 7, a Câmara de Faro recebia o telegrama da rainha D. Maria Pia informando que ia diligenciar para que «tão justo pedido fosse attendido». Mas se de Lisboa chegavam boas notícias, um naufrágio de um escaler da canhoeira Lagos, na barra do Ancão, com quatro mortos, trouxe a tristeza e o luto à cidade.
Segundo «O Futuro», na sua edição de 13 de Dezembro, «os estragos occasionados, principalmente nos campos, foram geraes de um a outro extremo da província», sendo Silves e Tavira as localidades que «mais soffreram, em consequência das grandes cheias dos seus respectivos rios». Na velha Xelb, a inundação, na parte baixa da cidade, teve, segundo «O Districto de Faro», uma altura de 2 metros, enquanto em Tavira subira 1 m, como se mencionou.
Um pouco por todo o lado, houve hortas e fazendas completamente alagadas, durante vários dias, pelo transbordo das linhas de água, sem esquecer, animais de capoeira, porcos e bois arrastados e afogados e estradas muito danificadas, pelo arrastamento do leito, ou queda das pontes, impossibilitando o trânsito.

Em Paderne, a ponte junto ao Purgatório cedeu arrastando um padernense, de 33 anos de idade, do Serro do Roque. A população convergira para ali para observar a enxurrada, afastando-se pouco depois com a chuva copiosa que começara a cair, sobre ela, ficara apenas Clemente do Carmo, quando subitamente a ponte se desmoronou. Apesar de um muro ficar emerso durante algum tempo e ter sido possível atirar uma corda, esta acabou por se partir quando o infeliz se atirou à água.
A cheia atingiu naquelas várzeas, segundo o «Progresso do Sul», do dia 16, uma altura de 2 m, numa largura de 2 km, inundando tudo e elevando-se em alguns locais uma altura de 8 m.
Cinco ou seis moinhos foram arrastados, e muitos ficaram arruinados, enquanto os moleiros se salvaram pelos telhados. Num deles, uma mulher e os filhos resistiram agarrando-se ao telhado, sobre uma mesa, onde permaneceram mais de 16 horas.
Segundo o correspondente daquele semanário, as terras ficaram ali com menos de um terço do valor, por «terem ficado todas raspadas; muitas figueiras, oliveiras, alfarrobeiras, laranjeiras e canaviais foram também arrastados».
A queda de pontes provocava grandes transtornos, de que a de Paderne não era exceção: «com a queda da ponte do Purgatorio, ficou Paderne separado do resto da província». Se a passagem a pé era possível a 3 km, de carroça era impossível, não existindo alternativa, e sem ela estava «paralysada toda a importação e exportação para alem da ribeira, de fructos e outros artigos de primeira necessidade, isto é, ameaçando-nos a fome».
Na aldeia, existiam «mais de 80 mil arrobas de alfarroba e 10 mil de amêndoas, sem se lhes poder dar outro destino, alem de estar suspenso o movimento do commercio das obras de esparto, que constituem uma importante industria d’esta freguezia». Toda a economia local estava em risco.
Em conclusão, e para o jornal «O Futuro», o Algarve sofreu «um temporal como ninguém se lembra de haver outro igual».
Com a atividade económica assente no setor primário, numa agricultura de subsistência, apoiada pela exportação dos frutos secos, as cheias de 1894 foram um rude golpe para a região, ainda para mais com muitos quilómetros das novas vias de comunicação destruídos, as primeiras estradas, dignas desse nome, que se tinham começado a construir havia menos de 40 anos.
Com as alterações climáticas em curso, estes fenómenos extremos e raros estão a tornar-se muito mais frequentes, registando-se ainda um incremento no grau de destruição. Urge por isso adaptar-nos a esta nova realidade, principalmente em termos de ordenamento do território, planeamento urbano, sem esquecer a necessidade imperiosa de reflorestar a serra algarvia, na absoluta certeza que as cheias de 1894, um destes dias, se vão repetir no Algarve.
Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.
Nota: Nas transcrições, conservou-se a ortografia da época. As imagens são meramente ilustrativas e correspondem a bilhetes-postais ilustrados.
