Num momento em que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) prolonga a acefalia e deriva, repetimo-nos na cogitação sobre a questão da finitude hídrica no Algarve, e sobre a ilusão de que o seu ciclo, o da água, nos garante um futuro. Não garante. Nem tão pouco a gestão dos recursos hídricos sob a orientação da Diretiva Quadro da Água.
Só nos garantirá o futuro uma administração do território corajosa e capaz de combater o seu esventramento em nome de um desenvolvimento económico só aparente. Uma gestão territorial que faça coincidir o que está no papel com o que é visível no terreno. Uma gestão territorial que não ceda aos lobbies que adiante elucidaremos sobre como nos haurem.
Agricultura da liquidez
O desenvolvimento no Algarve não é, há décadas, sustentável em nenhuma das formas de sustentabilidade. Não temos água; não temos casas para habitar; não temos economia resiliente capaz de oferecer estabilidade laboral; não temos transportes dignos. Temos perdas incomensuráveis de gentes e dos seus modos; de biodiversidade; de património cultural e ambiental; de áreas de infiltração de água nos aquíferos. E como se não fosse suficiente a meandrosa rede de influência turístico-imobiliária para porfirizar a costa e os costumes, temos agora um novo e muito sério caso: a agricultura intensiva e a água que nos leva, até as lágrimas nos secar.
É verdade que a precipitação foi-se reduzindo nos últimos anos no Algarve, ou antes, na Região Hidrográfica 8 (RH8), mas de forma pouco significativa, cerca de 5% de redução global. Uma frase de Setembro de 2020 que consta no documento exarado pela APA designado “Questões significativas da água” (QSiGA) afirma: “RH8 – QSiGA 18: Escassez de água – O défice hídrico na RH8 não é atualmente tão acentuado, tendo presente o nível de garantia de 95%…” Ainda assim, a seca instalada e os primeiros sinais de escassez hídrica fizeram com que à data o Ministro do Ambiente e Alterações Climáticas, acompanhado (equivocadamente) da Ministra da Agricultura, apresentasse um “Plano Regional de Eficiência Hídrica do Algarve” (PREHA) ao mesmo tempo que anunciava que não iria recorrer à construção de novas barragens afirmando que “se não chove numa, não chove nas outras” (sic).
As reservas de água estão a diminuir, é um facto, mas não tanto pela falta de chuva. Estão porque a procura aumentou de forma exponencial e a agricultura intensiva, por mais precisão que lhe ponham na redução do seu desperdício, é responsável por 70% do consumo de água no território, com o turismo e o consumo urbano a gastar praticamente os outros 30%. Houve uma exploração de abacates que foi condenada em tribunal a arrancar parte da cultura por se ter demonstrado tecnicamente que a água disponível no aquífero não era suficiente para a regar.
Este facto é transversal a todo o Algarve, com uma agricultura que se estima regada 75% por água subterrânea. Infelizmente, não há força de dinheiro suficiente para levar todos os casos análogos a tribunal. Caso houvesse, o mesmo provar-se-ia para a maioria das plantações. Provar-se-ia que a água não chega! É difícil compreender isto? Aparentemente é, a tal ponto chega a desproporcionalidade de interesses que oculta nela o essencial.
Esta semana lá teremos na FATACIL mais uma das muitas operações de enfeitiçamento com a apresentação de uma sessão denominada “ESG – Ambiente e Sustentabilidade: desafios atuais e futuros para a Agricultura no Algarve”. O país, aliás, regurgita de congressos sobre o futuro da água em Portugal, sobretudo desde Novembro do ano passado. Os “stakeholders” marcam encontros sucessivos como se algo estivesse iminente. E está – a rutura irreversível.
É um facto que a agricultura intensiva em vigorosa expansão no Algarve reduz perigosamente as reservas hídricas, aumenta a impermeabilização dos terrenos (reduzindo ainda mais as reservas de água), contamina e degrada os solos e os aquíferos com os seus agroquímicos, reduz a biodiversidade e, paradoxalmente, tem um contributo diminuto para a economia regional com menos de 4,5% do VAB regional (valores de 2022 da CCDR-Algarve, que incluem florestas, agricultura, pescas, caça e produção animal).
Alguém imaginou alguma vez que o valor do quilo de laranja seria inferior ao do quilo de batata? A economia agrícola algarvia é totalmente marginal do ponto de vista económico e social (também não gera emprego, na verdadeira aceção do termo), mas é uma consumidora ávida de um recurso escasso e essencial à continuidade da região. Defender esta agricultura aqui nesta região é, pelo menos, um ilogismo.
PRR, uma lavagem automática
Não tendo até hoje ocorrido o milagre da chuva aconteceu o “milagre” do PRR. Aquele tal plano especial, o PREHA, visava um alinhamento do Plano de Gestão de Região Hidrográfica (PGRH) da RH8 em seguimento às questões significativas da água identificadas, mas, num passe de mágica, aparece convertido em plano de investimento da Componente C9 – Gestão Hídrica da área de incidência “Resiliência” do PRR.
Ilusoriamente e à margem do PGRH das Ribeiras do Algarve, o PRR foi apresentado como um conjunto de investimentos adequados à resolução das necessidades hídricas regionais, como se fosse remédio efervescente ao qual bastaria juntar água. Resumidamente, a componente C9 do PRR para o Algarve engloba um total de investimento superior a 237 milhões de euros distribuídos da seguinte forma: 2% para a APA, que reivindica desde o primeiro ciclo de planeamento em 2010, capacidade financeira para fiscalizar e monitorizar os recursos hídricos (como se vê uma ínfima parte das necessidades); 8% para a melhoria da eficiência de rega em mais de 10.000 ha servidos por aproveitamentos hidroagrícolas coletivos ou regadios individuais; e… 90% para as Águas de Portugal (eventualmente, via Águas do Algarve).
Ou seja, o tão anunciado PRR que nos vai “salvar” decidiu fazê-lo pela empresa pública Águas de Portugal e pelas suas decisões de investimento, as quais recebem mais de 210 milhões para: construir parte de uma dessalinizadora; reutilizar águas residuais de ETAR; melhorar perdas nas redes, fazer uma captação no Pomarão (Guadiana); captar volume morto em Odeleite; construir a ligação desta barragem para alimentar os sistemas de distribuição a Barlavento.
Quer isto dizer que praticamente todo o investimento do PRR está dirigido ao sector que menos água consome, o urbano, engordando a faturação das Águas de Portugal com a venda de água mais cara para os consumidores e libertando caudal gratuito para a agricultura. Tanto dinheiro, tão pouca solução, que os ganhos em volume são, afinal, diminutos (inferiores a 30% do consumo anual). Sim, 30% dos consumidores vão pagar mais caro a água que consomem e absorver a maior parte dos investimentos do PRR enquanto discretamente a agroindústria assegurou caudais a preço de saldo, como se a causa da seca estivesse nas torneiras domésticas ou como se a exportação de abacates e morangos fosse uma causa patriótica e vital para a região Algarve.
Todo este truque de contabilidades serve para pôr o consumidor doméstico a pagar os elevados custos de assegurar água a uma agricultura de que não beneficia: serve para pagar o preço das emissões de carbono associadas a soluções muito dependentes da energia necessária para as bombagens. Mas iremos ainda pagar um preço muito mais alto do que aquele que nos vai bater à porta na fatura mensal, que é o facto de perigosamente legalizarmos uma captação espanhola no Guadiana, Boca-Chança, ilícita desde os anos 70 do século XX e motivo de grande embaraço diplomático. Esta legalização do sequestro de água pelos “nuestros hermanos” é aquilo que tem vindo a ser anunciado como “não vamos ceder caudal”. Mas que belo exercício sematológico.
Ode ao deleite da desgovernação
Esta medida C9 do PRR surgiu num vazio de planeamento da APA, ainda não tinham sequer sido lançados para consulta pública os PGRH. Ela oculta um financiamento incomparável às Águas de Portugal. Será que assim se lhe facilita a tarefa de emprestar ao governo uns míseros 100 milhões para dar uma burilada ao défice do Estado? A APA, que de facto deveria gerir os nossos recursos hídricos, continua sem quase nenhuns recursos para o fazer.
A APA, a autoridade para a avaliação de impacto ambiental, engoliu a seco propostas para projetos a financiar que nunca foram apresentados para avaliação das suas implicações ambientais: ocupação de áreas protegidas e de reserva ecológica ao uso imponderado de recursos hídricos.
Nesta estranha fluidez institucional entre APA e Águas de Portugal, uma outra coincidência se assinala. É a de o agora presidente das Águas de Portugal, Professor Carmona Rodrigues, ser também o autor da ideia, em 2020, da retoma do projeto da captação do Pomarão elaborado nos anos 60 pela Hidroprojecto, onde e quando foi bolseiro e iniciou a sua carreira. A captação, com conduta adutora até à barragem de Odeleite, foi uma ideia que nunca vingou porque o Alqueva era muito melhor e o regadio intensivo no Algarve era um absurdo impassível de ponderação lógica.
Os alarmes contra a efetiva depleção da água no território pela agricultura extrativista e a seca instalada (que na região é comum e recorrente ao longo dos séculos) acabaram por criar a narrativa perfeita para justificar o ressurgimento e cativação de financiamento destas soluções antiquadas, muito ao jeito da engenharia do betão que, ou ignoram as novas soluções baseadas na natureza e os fatores de sustentabilidade, ou apenas se visam jogos de lucros que lhes vão garantindo os acessos a este ou aquele lugar.
Neste lugar, aqui, esta ligação económica entre a agricultura das multinacionais e a água é um rastilho para a dinamitação. A agricultura industrial intensiva não vive sem água e é um financiador por excelência de dois ávidos gigantes económicos: a indústria agroquímica e os transportes da grande distribuição alimentar. Eleitos para a liquidação, vão mudar de sítio quando destruírem tudo como aconteceu já em tantos outros locais do mundo que lhes são indiferentes.
Quando parecia impossível pior cenário, eis que surge a premonição da exaustão: o escandaloso Despacho n.º 7821/2024, de 16 de julho. Se havia dúvidas sobre a pérfida ligação, ficamos agora com certezas. O despacho que vem diretamente dos gabinetes da Ministra do Ambiente e Energia e do da Agricultura e Pescas, cria o grupo de trabalho para elaborar uma nova estratégia nacional para a gestão da água designada «Água que Une».
Este grupo é presidido, sem surpresa alguma, pelo professor Carmona Rodrigues, secundado pelo recém conduzido no cargo de Vice-presidente da APA (que tão utilmente não tem ainda presidente), a EDIA (que gere o empreendimento do Alqueva), e a Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Regional.
A “água que une” unirá interesses económico-harmónicos e fala, claramente, em transvases (ressalvando que será “em último caso”), mais barragens, mais dessalinizadoras e novas infraestruturas. Nada ali se nos apresenta como um programa para a gestão eficaz da água no território, apenas diz que a agricultura se quer expandir e precisa de beber mais. Apenas diz que em 180 dias se vai planear uma próxima década de aniquilamento dos nossos recursos hídricos.
O povo que ordena o seu território
A maioria dos aquíferos subterrâneos do Algarve está a enfrentar o abismo da intrusão salina fazendo com que a água salobra não sirva para ninguém: nem agricultura, nem humanos, nem ecossistemas. Fica à mercê da dessalinização agora em qualquer parte onde haja um furo.
Ficaremos sem nada se não conseguirmos exigir que se faça e invista no que está escrito como sendo o melhor para todos – as designadas soluções baseadas na natureza: florestação séria; restauro ecológico e reflorestação de áreas ardidas (que também reduzem os riscos de incêndio); financiamento à substituição e eliminação de culturas e estímulo à produção agroecológica; apoio à instalação e à produção de pomar de sequeiro; recuperar e monitorizar as linhas de água, reforçar a recarga dos aquíferos e o seu total e absoluto controlo; financiar a implementação de reservas de água domésticas ou de pequena escala (charcas e cisternas) e outras retenções de águas pluviais; medidas para um turismo (verdadeiramente) sustentável, pois é isso mesmo que nós e quem nos visita queremos ver: a natureza, o privilégio de vivermos rodeados de tanta beleza.
É necessário usar a história (que tanto nos tem ensinado sobre o património e gestão da água na região) e a modernidade; usar a ciência e a cabeça e parar com os exercícios de retórica. Aplicar ao agronegócio os princípios (e taxas) do poluidor-pagador e assumir a classificação de “agricultura industrial” tornando-a num negócio financeiramente menos atrativo para os investidores, mas mais justo no mercado (incluindo em comparação ao turismo que paga muito mais pelo uso dos mesmos recursos: água e terrenos).Apoiar, como nunca antes, aqueles que são, de facto, ainda, agricultores.
E para os que dizem que “precisamos de comer” comecemos então por proibir o regadio de não alimentares (canábis, flores de corte, nutracêuticos, biocombustíveis, etc.), estimular a produção de proximidade e o encurtamento do transporte, apostando ainda na transformação local, aumentando a cadeia de valor. Tudo isto está em múltiplos planos que nos elucidam sobre os comportamentos a adotar face às ameaças que nos acenam e assolam diariamente: as alterações climáticas.
Quando nos pedem para poupar água, sorriamos. Porque culturalmente sempre a poupamos e por ser absolutamente insignificante aquilo que o consumidor individual pode contribuir para a solução de um vasto e profundo problema ao qual é totalmente alheio: o agronegócio. O Algarve está em seca ou há escassez? O melhor é proibir o uso dos lava-pés. Pouco importa se se vai usar a mesma água a lavar os pés em casa. Não metamos os pés pelas mãos. Não lavemos daqui as nossas mãos.
Autor: Cláudia Sil, formada em Engenharia Biológica e doutorada em Ciências do Mar, da Terra e do Ambiente, é investigadora do CCMAR e co-fundadora do BlueZ C – Instituto da Conservação Marinha e Economia do Carbono. Foi presidente do núcleo algarvio da Quercus e da Regenerarte.