Mais campo na cidade e mais cidade no campo (em memória do Arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles)

Agora que se fala tanto em distanciamento e isolamento sociais, talvez uma das janelas de oportunidade esteja na oferta de mais campo na cidade e de mais cidade no campo

Plantações de árvores não são floresta, engenharia florestal não é silvicultura, culturas transgénicas não são agricultura, animais clonados não são pecuária, operações fundiárias não são engenharia biofísica, arranjismo verde não é arquitetura paisagista, esverdeamento de culturas não é prestação de serviços ambientais.
(Gonçalo Ribeiro Telles)

Agora que se fala tanto em distanciamento e isolamento sociais, talvez uma das janelas de oportunidade esteja na oferta de mais campo na cidade e de mais cidade no campo, isto é, uma outra arquitetura da relação entre espaços urbanos e rurais e, portanto, nessa sequência, também uma outra sociabilidade e etiqueta social.

Façamos, então, uma breve incursão por estes novos espaços de relação entre a cidade e o campo, agora que se fala, também, em arquitetura verde a respeito da reforma da PAC para a próxima década.

Recordemos o arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles a este propósito: “O desenho de uma estrutura verde limitada à distribuição na cidade de parques e jardins públicos e ao embelezamento com plantas ou aos arranjos paisagísticos e outros ornamentos, deve ser substituído por um desenho global que se inspire na natureza, na cultura e na paisagem e responda à inquietação estética e às necessidades sociais e culturais da atualidade”.

É necessário lembrar que as cidades e vilas são conjuntos orgânicos que nasceram integrados na paisagem rural. Ora, os espaços verdes da cidade do século XXI, mais do que áreas implantadas como ilhas no interior do edificado, deverão organizar-se em corredores verdes que, ao percorrer a cidade, permitirão a existência de percursos e espaços de lazer, recreio e desporto livre, até se integrarem nas paisagens tradicionais dos campos limítrofes, constituindo com elas uma estrutura contínua que garantirá a sustentabilidade ecológica e física de toda a região.

À nossa frente, está, pois, um novo desenho dos espaços de relação cidade-campo, que a arquitetura paisagista e a engenharia biofísica, mas, também, as artes da paisagem, colocam à nossa disposição.

Em três planos principais. Em primeiro lugar, os espaços rurais de produção, com a agricultura de precisão e os sistemas produtivos locais (SPL) à cabeça.

Em segundo lugar, os espaços rurais de consumo, com as amenidades, os sinais distintivos territoriais e os serviços de recreio, lazer e turismo na primeira linha.

Em terceiro lugar, os espaços rurais colaborativos, um universo muito amplo de atividades de interface cidade-campo e onde as plataformas digitais e os novos rurais desempenham um papel fundamental.

Os espaços rurais de produção

A constelação tecnológica NBIC, formada pelas nanotecnologias (N), as biotecnologias (B), as indústrias informáticas (I) e as ciências cognitivas (C), terá um impacto imenso sobre a saúde humana, as indústrias da alimentação e o mundo natural.

Com as NBIC, nós seremos cidadãos permanentemente conectados e vigiados, em qualquer lugar, independentemente do “não-lugar” onde estejamos.

As NBIC terão um impacto significativo na chamada agricultura de precisão e nas suas cadeias de valor. Eis alguns exemplos de tecnologias de precisão já hoje utilizadas: a gestão remota da rega, a monitorização das culturas a partir de imagens aéreas obtidas com drones, as câmaras de vigilância nos estábulos e vacarias, os robots de ordenha e alimentação, os chips nos animais para acompanhamento do seu ciclo de vida, os robots para realizar os trabalhos na vinha, os veículos autónomos como máquinas agrícolas e tratores, a sensorização da floresta (os olhos e os ouvidos das árvores), as câmaras térmicas (os olhos noturnos dos bombeiros), as imagens por drone das zonas com maior acumulação de matos, os robots para fazer o ataque a incêndios, o farming data e o cloud computing, os modelos computacionais para a elaboração de cenários de intervenção, a criação de aplicações em smartphones para uso de agricultores e bombeiros, finalmente, a inteligência artificial (machine learning) para diversas simulações.

Mas a agricultura de precisão será apenas um dos vetores presentes no mundo rural. Os sistemas produtivos locais (SPL), sistemas agroalimentares (SAL) e sistemas agroflorestais (SAF) serão, igualmente, um pilar fundamental da 2ª ruralidade.

Estou a falar de cadeias de valor, de sistemas de produção, de recursos endógenos, de circuitos de comercialização e de redes de distribuição mais curtos e localizados e com uma logística adaptada a cada região em concreto.

Nesta aceção, estou a falar de nichos de agricultura biológica, de agriculturas de conservação muito variadas, de agricultura comunitária de proximidade, de agricultura urbana, de agriculturas com indicação geográfica, de agriculturas de recreio e lazer, etc.

São estas duas linhas de abordagem, agricultura de precisão e sistemas produtivos locais, tomadas com conta, peso e medida e respeitando a ecologia dos recursos naturais, que permitem desenhar um mosaico produtivo variado e harmonioso e, dessa forma, fazer uma transição tranquila para os espaços rurais de consumo.

Os espaços rurais de consumo

Se a engenharia biofísica e a arquitetura paisagista ajudarem, sobretudo com as infraestruturas ecológicas, os corredores verdes, os serviços de ecossistema e as amenidades paisagísticas, estarão criadas as condições para que os espaços rurais de produção se convertam, naturalmente, em espaços rurais de consumo.

E, nesse sentido, as tecnologias de informação e comunicação (TIC) e a as empresas de recreação e lazer lá estarão para acrescentar valor ao nosso interior mais profundo e remoto.

Com efeito, não serão apenas os terroirs do Alentejo Vinhateiro, do Dão e Bairrada, do Alto Douro Vinhateiro, do Minho Verde e outras rotas do enoturismo a atrair os visitantes.

Os territórios mais remotos e hostis, através dos seus sinais distintivos territoriais, SDT, (os parques naturais e os geoparques, por exemplo) serão um desafio à imaginação tecnológica e digital e aguardamos, a todo o tempo, que as universidades, os centros de investigação e as start-up mais ousadas sejam capazes de nos trazer novidades na forma de ocupar e observar estes territórios, o que, aliás, já acontece.

De resto, a chegada de muitos neorurais talentosos revolucionará os tradicionais terroirs de produção e as empresas do marketing digital e da publicidade, em conjugação com as empresas de animação turística e cultural, aproveitarão a oportunidade e tomarão o mundo rural como um décor para as suas incursões e representações.

O naturalismo romântico do rural profundo tornar-se-á uma espécie de cenário natural e um ativo para as produções artísticas e culturais: do génio dos lugares à espiritualidade da natureza, do sentido religioso do silêncio aos mistérios da vida natural, da beleza de um quadro pictórico à nostalgia da vida simples.

Os espaços rurais colaborativos

Ao lado dos espaços rurais mais comerciais teremos, igualmente, uma economia ecológica e colaborativa que tornará o capitalismo mais popular e genuíno, no sentido próprio dos termos.

Formar-se-ão comunidades locais onde o capital social e a inteligência coletiva serão tão ou mais decisivos que o capital financeiro. Estas comunidades adotarão uma coreografia política e social mais complexa do que a atual e atribuirão um lugar especial para a ecologia, a solidariedade social e a ética do cuidado.

Esta será uma das principais tarefas do próximo futuro, a saber, a criação de uma inteligência coletiva territorial capaz de enquadrar os ecossistemas mais sensíveis do rural profundo e onde a justiça ambiental e a justiça social sejam as duas faces da mesma moeda. Nesta tarefa serão essenciais as redes de vilas e cidades do interior.

Não tenho dúvidas, teremos mais campo na cidade e mais cidade no campo. Teremos mais economia circular, mais corredores verdes, melhor aproveitamento de logradouros e jardins urbanos, uma agricultura comunitária e periurbana mais eficaz, mais circuitos curtos e distribuição de proximidade, mais saúde pública e muitos projetos agroculturais que serão uma atração para os neorurais que chegarão muito curiosos para ocupar o interior do país.

É aqui que as plataformas colaborativas funcionarão como uma ferramenta fundamental para montar esta inteligência coletiva territorial.

E surgirão muitas iniciativas da sociedade colaborativa onde a conexão entre comunidades, plataformas e redes distribuídas será decisiva, por exemplo: no alojamento local, na economia circular, nos circuitos curtos, na produção local de energia, nos mercados de ocasião, nos serviços ambulatórios e domiciliários, nas artes e ofícios, na mobilidade partilhada, na comunidade dos lares e centros de dia, no financiamento participativo, na defesa do património natural e construído, nas comunidades de educação, formação e emprego, nos serviços de extensão e cooperação, na produção de conteúdos e comunicação, etc.

As associações locais, as cooperativas, as fundações, as IPSS, as redes de municípios, as escolas e as instituições de ensino superior serão o agente principal destas plataformas e aqui a imaginação não tem limites. Os espaços de coworking, os fablab, as incubadoras, os centros de investigação, as start up, as associações de desenvolvimento local, serão os locais privilegiados para fazer nascer estas plataformas e redes digitais.

Notas Finais

A cooperação entre vilas e cidades é um recurso perfeitamente acessível e um instrumento valioso para introduzir um novo padrão de relações cidade-campo, se quisermos, uma nova arquitetura para a visitação e o turismo em espaço rural, mas, também, um pilar essencial para o bem estar da sociedade sénior.

A ecologia e a economia, a arte e a cultura, abrem a porta a inúmeros fatores imateriais e intangíveis que contribuem fortemente para recriar as cadeias de valor hoje existentes. É uma grande oportunidade para as regiões mais pobres em recursos materiais.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

Ajude-nos a fazer o Sul Informação!
Contribua com o seu donativo, para que possamos continuar a fazer o seu jornal!

Clique aqui para apoiar-nos (Paypal)
Ou use o nosso IBAN PT50 0018 0003 38929600020 44

 

 



Comentários

pub