Os neorrurais e a 2ª ruralidade

O realismo pragmático diz-nos que “sem permanência não há competência”

Volto ao tema dos neorrurais e da 2ª ruralidade, desta vez, a pretexto da pandemia e do seu impacto sobre as relações cidade-campo e, mais especificamente, aos modelos de negócio que podem inspirar uma verdadeira relação com os vários universos do mundo rural.

Num país tão pequeno como o nosso, tão bem servido de vias de comunicação e com uma rede tão bem distribuída de instituições de ensino superior, grande beneficiário líquido de fundos europeus nos últimos 35 anos, tudo levaria a crer que a população se distribuiria de forma muito mais harmoniosa pelo território. Puro engano. Trinta e cinco (35) anos depois do ato de adesão à CEE continuamos a repetir os mesmos diagnósticos de abandono, despovoamento e desertificação, não obstante as excelentes exceções que registamos, em especial, o exemplo do trabalho de muitos autarcas.

Não obstante, num país tão pequeno e tão variado do ponto de vista microclimático, há sinais e boas razões para crer que as opções socioprofissionais e familiares das gerações mais jovens serão, no futuro pós-pandemia, mais diversificadas e diferenciadas.

Vejamos alguns aspetos do problema, em especial as origens dos neorurais e os modelos de negócio da 2ª ruralidade.

 

Os amigos do campo e as origens dos neorrurais

As mudanças profundas ocorridas nas primeiras duas décadas do século XXI – socio-ecológicas, tecno-digitais, sociofamiliares – levaram-me a escrever, por várias vezes, sobre essa figura quase mítica “o neorrural” que, entre a cidade e o campo, teria sido eleito para resgatar o nosso mundo rural.

O espaço rural é, cada vez menos, um espaço produtor e, cada vez mais, um espaço produzido. O mundo rural é, hoje, um palco imenso onde se desenrolam todas as representações do mundo atual, das mais paroquiais e populares às mais cosmopolitas e sofisticadas. Isto quer dizer que o nosso candidato a neorrural tem as mais variadas proveniências e naturezas, quase todas elas de origem urbana.

Senão, vejamos:

– Os “nostálgicos românticos”, proprietários e residencialistas, para eles o campo é um universo de recordações e evocações,

– Os “peri-urbanistas pendulares”, que já iniciaram o êxodo urbano e procuram, agora, outras opções de vida em pequenas explorações familiares,

– Os “ecologistas militantes e os agricultores integralistas” para quem o campo é uma espécie de regresso à terra-mãe biológica,

– Os tecnólogos e os engenheiros digitais reclamados pela agricultura de precisão, a robótica e a internet dos objetos, seja no controlo in situ ou no controlo remoto ex situ,

– Os “turistas da natureza e os desportistas radicais” descobrem a pouco e pouco a utilidade social do respeito pela natureza e o ambiente,

– Os “arquitetos paisagistas, os engenheiros do ambiente e os biólogos da conservação” procuram proteger e preservar o seu objeto de trabalho para lá do combate contra as alterações climáticas e dos conflitos corporativos que os animam,

– Os amigos do património arqueológico e histórico-cultural que organizam jornadas científicas e visitas culturais através das novas plataformas digitais colaborativas,

– As confrarias e os confrades, quais cuidadores dos aromas e sabores da dieta tradicional, buscam um sinal distintivo territorial para a visitação turística e a identidade regional,

– Os “sequestradores de carbono e os novos produtores de energia limpa” para quem o campo é uma fonte inesgotável de recursos renováveis,

– As associações do ambiente e o longo cortejo de voluntários que reúnem à sua volta para muitos projetos sociais e comunitários.

Como se observa, as origens dos neorrurais são muito diversas. De resto, os neorrurais não vivem, geralmente, no campo, têm uma cultura pro-campo, são amigos do campo mesmo vivendo na cidade grande.

Estamos, doravante, imersos no paradigma da mobilidade e das economias de rede e visitação. Apesar da pandemia e de as novas regras de etiqueta social nos sugerirem o “espaço aberto” do universo rural, há muita ambiguidade na forma como interpretamos e aplicamos o paradigma da mobilidade.

Dito de forma mais direta, não vamos, claramente, assistir ao êxodo urbano em direção ao campo, nem vamos abdicar de algumas das categorias intelectuais e ideias dominantes que nos regeram nas últimas décadas, muitas delas fonte de inúmeros mal-entendidos.

Não obstante, nada irá ficar como dantes, nem na cidade nem no campo. Enfim, estamos perante um verdadeiro programa político para o mundo rural.

 

Os novos modelos de negócio no mundo rural

Creio que já é possível enunciar algumas áreas socioprofissionais onde se concentrarão os principais mercados de futuro do mundo rural. Eles estarão, certamente, na confluência de quatro grandes vetores emergentes, a saber: o combate contra as alterações climáticas, a adoção das TIC, a agroecologia e os alimentos biológicos e, por último, a biodiversidade, os ecossistemas e as paisagens globais.

No primeiro caso, o realce vai para os mercados do carbono, os mercados energéticos descentralizados e os serviços de mitigação, adaptação e compensação em matéria de alterações climáticas.

No segundo caso, as plataformas digitais, as tecnologias de georreferenciação e a gestão da informação serão as áreas fundamentais de trabalho.

No terceiro caso, as áreas profissionais compreendem as ciências agrárias e agronómicas, as ciências da vida e da alimentação.

Na última área socioprofissional, vamos precisar da colaboração da ecologia funcional e dos biólogos, dos engenheiros biofísicos e dos arquitetos paisagistas.

Tudo somado, teremos pela frente um vasto leque de atividades necessárias aos vários universos rurais e, portanto, hipóteses muito interessantes para modelos de negócios muito diversificados:

– Os modelos de negócio de prestação de serviços ligados à provisão de serviços para as smart cities, cidades inteligentes e criativas,

– Os modelos de negócios de prestação de serviços relativos à transferência e transformação digitais para atividades económicas e empresariais,

– Os modelos de “condomínio rural”, seja sob a forma cooperativa e/ou mutualista ou por via de um contrato de prestação de serviços,

– Os modelos AAC (agricultura acompanhada pela comunidade), de suporte ao institutional food e aos pequenos mercados de abastecimento local,

– Os modelos CIM (comunidade intermunicipal) de suporte a sistemas produtivos locais, a mercados de nicho e a parques agroecológicos intermunicipais de fins múltiplos, produtivos, recreativos, pedagógicos e terapêuticos,

– Os modelos de prestação de “serviços naturais” relativos aos geoparques, parque naturais, áreas de paisagem protegida, amenidades e zonas termais,

– Os modelos especializados de prestação de serviços tecnológicos, prestados, por exemplo, por start up às várias modalidades de agricultura de precisão,

– Os modelos pré-competitivos e as infraestruturas colaborativas onde se prepara o capital humano e social para todas estas realizações, dos centros de investigação, aos espaços de coworking, e aos laboratórios colaborativos onde nascem as incubadoras e as start up da 2ª ruralidade.

 

Notas Finais

Em todos estes casos, é privilegiada a formação de uma “inteligência coletiva territorial” (ICT), em particular, pela constituição de plataformas colaborativas apropriadas que, para o efeito, devem estar em condições de contratar profissionais nas áreas referidas.

No mesmo sentido, a reforma da PAC deve considerar a constituição de alguns “laboratórios colaborativos” onde os serviços regionais, as instituições de ensino superior e as organizações profissionais possam fazer convergir os seus interesses, em particular, cofinanciar serviços de incubação empresarial, gestão agroambiental e extensão rural.

Não obstante as dificuldades e o seu evidente constrangimento, deixo aqui alguns tópicos para uma espécie de “roteiro neorural da 2ª ruralidade”, útil, por exemplo, para planear o desenvolvimento dos agrupamentos de aldeias ou municípios do interior:

Base nº1: “Em busca das sementes perdidas”: recuperação da biodiversidade local e restauração biofísica dos hotspots respetivos (base biodiversa);

Base nº2 “Poupança, conservação e eficiência energética”: divulgação de boas práticas energéticas (base energética);

Base nº3: “Bioconstrução e bioregulação climática”: o uso de materiais e tecnologias locais de construção e boas práticas em matéria de bioregulação e adaptação às alterações climáticas (base climática);

Base nº4 “Produção e educação agroalimentar”: autoabastecimento e autogestão da produção alimentar (base alimentar);

Base nº5 “Turismo de natureza”: ordenamento dos percursos e dos fluxos de visitação, dos endemismos locais aos sítios histórico-arqueológicos (a base ecoturística);

Base nº6 “Floresta de fins múltiplos”: a multifuncionalidade da floresta e o seu uso múltiplo (base florestal);

Base nº7 “Mobilidade suave”: o desenho de vários projetos de acessibilidade, em especial para grupos de mobilidade reduzida (base de mobilidade);

Base nº8 “Microcrédito”: o crédito popular para os pequenos empreendimentos em conjugação com outros formatos financeiros (base financeira);

Base nº9 “Banco de tempo”: a entreajuda entre vizinhos e amigos do projeto para um programa de voluntariado (base voluntariado);

Base nº 10 “Memória futura”: a arte e a cultura, em todas as suas dimensões, ao serviço do desenvolvimento integral do cidadão e da comunidade (base sociocultural).

Para lá da moda neorrural e dos seus três pivôs – o green, o eco e o bio – para lá da nossa nostalgia, romantismo e até algum paternalismo académico, o realismo pragmático diz-nos que “sem permanência não há competência”, isto é, sem a presença de um ator-rede, um pivô acreditado na comunidade, não haverá desenvolvimento sustentável e emprego duradouro.

Por isso, aos neorrurais da 2ª ruralidade pede-se que estejam presentes in situ, sob pena de, eles próprios, acabarem por reproduzir, mais uma vez, todos os equívocos do nosso mundo rural.

 

 


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