Mértola, campo arqueológico e estação biológica: A arte da recomposição de um território de baixa densidade

António Covas reflete sobre o projeto da Estação Biológica de Mértola

O jornal Expresso do passado fim de semana anunciava que “Mértola vai acolher projeto científico único no mundo, uma estação biológica e um centro internacional de investigação na área do combate à desertificação e alterações climáticas em colaboração com as Universidades de Oxford, Cambridge e Harvard”.

A notícia, em si mesma, anunciada desta forma tão virulenta, abre-nos a porta para um universo imenso de sentimentos, emoções e desejos. Se eu bem conheço os alentejanos do Baixo Alentejo, eles vão simplesmente dizer “deixa-os poisar”.

Porém, se o legado do arquiteto Cláudio Torres frutificar e a experiência do campo arqueológico iluminar as mentes dos novos promotores, eu tenho a certeza de que a união dos dois patrimónios, o histórico-cultural e o biogeográfico, trarão prosperidade e felicidade ao concelho de Mértola, ao Baixo Alentejo e à cooperação transfronteiriça do Sudoeste Peninsular no seu conjunto.

Nesta fase muito inicial não quero deter-me nas inúmeras dificuldades de percurso, processo e procedimento. Mas haverá, infelizmente, muitas oportunidades para outros tantos incidentes de percurso.

Nos meus escritos sobre os territórios inteligentes e criativos e os respetivos processos de smartificação, tenho salientado com frequência aquilo que designo como “A arte da composição dos sinais distintivos de um território” e, por maioria de razão, de um território de baixa densidade.

Como costumo dizer, “os territórios não são pobres, estão pobres” numa determinada fase do seu ciclo de vida. Acresce que, na sociedade da informação e do conhecimento em que vivemos, não são os territórios que apresentam um défice de sinais distintivos, é o nosso conhecimento e a nossa cultura que pecam por defeito em relação a esses mesmos territórios.

Ora, o que esta notícia do Expresso nos anuncia é a promessa de “um casamento quase perfeito” entre o património cultural, representado pelo campo arqueológico, e o património natural, aqui representado pela futura estação biológica.

Na minha teoria dos “sinais distintivos territoriais” quanto mais conhecimento e cultura conseguirmos reunir acerca de um determinado território melhores serão as condições de partida para levar a bom termo a smartificação desse território, ou seja, a composição de um território mais inteligente e criativo.

Se assim acontecer, poderemos acrescentar realidade aumentada e realidade virtual à realidade material já existente e esta realidade tridimensional será um excelente ponto de partida para promover um território mais inteligente e criativo. Por outras palavras, com a união entre os dois patrimónios, teremos criado, na vila de Mértola e em todo o Baixo Alentejo, uma infraestrutura científica, técnica e cultural que alimentará, estou certo, uma verdadeira “geografia dos desejos” acerca da moura encantada que ainda adormece na vila de Mértola.

Ela reside algures no campo arqueológico cuidando dos seus derradeiros vestígios, mas, quem sabe, talvez venha a encontrar o seu príncipe encantado no outro lado do rio Guadiana.

O nosso imaginário, a partir de agora, colocará à nossa disposição muitos outros sinais distintivos territoriais.

Com esta brevíssima reflexão quero apenas registar “o belo sarilho em que nos metemos” com o anúncio da estação biológica na vila de Mértola e manifestar, por inteiro, a minha adesão a tão arrojado empreendimento. A minha maior dúvida existencial neste momento é a de saber se um empreendimento com tal nobreza de propósitos é capaz de respeitar e cumprir, com o sentido das proporções, um projeto que na atual conjuntura global tem uma responsabilidade com tamanha gravidade, não estando nós, por razões diversas, à altura dessa responsabilidade.

Lembremos o contexto. Estamos perante quatro grandes transições. A transição climática e energética, a transição tecnológica e digital, a transição sociodemográfica, a transição socio-laboral. Em boa medida, a “promessa de casamento entre os dois patrimónios” será posta à prova desde o início se não for capaz de dar uma resposta satisfatória e distribuída no tempo a estas quatro grandes transições.

De resto, os concelhos do Vale do Guadiana e o concelho de Mértola em especial representam, em si mesmos, um compacto de problemas destas grandes transições: das “guerras da água” à fratura digital, da extinção de espécies de fauna e flora ao inverno demográfico, das desigualdades de rendimento à precariedade do mercado de trabalho.

Por outras palavras, o pior que pode acontecer é um enquistamento destes dois projetos nos seus limites estritos científicos e técnicos e, nessa sequência, que se perca definitivamente esta oportunidade para relançar a economia do grande sul interior e transfronteiriço da Euro-região Alentejo, Algarve, Andaluzia e do Sudoeste Peninsular.

 

Notas Finais:

Reconheço a dificuldade da tarefa tanto mais quanto a vila de Mértola é um bom exemplo do “grande círculo vicioso” para onde o país remeteu muitas regiões do nosso país. O campo arqueológico, a estação biológica e o parque natural não irão, obviamente, reverter este círculo vicioso como se de um milagre se tratasse.

Faltará sempre massa crítica, a intensidade-rede e os efeitos de escala e aglomeração que são necessários. Não obstante, gostaria de contribuir, modestamente, para que essa intencionalidade estratégica fosse uma realidade, com o propósito, justamente, de criar alguma massa crítica de intervenções, maior intensidade rede e um efeito de aglomeração significativo.

Os tópicos que se seguem fazem parte desse eventual programa integrado de intervenção:

– Uma cobertura digital suficiente,
– Uma ligação da rede hídrica à albufeira de Alqueva,
– A redução da pegada ecológica do rio Guadiana,
– A melhoria da navegabilidade da bacia do Guadiana,
– A criação da região biogeográfica do Vale do Guadiana,
– Uma nova campanha de escavações no campo arqueológico,
– A criação dos roteiros biodiversos e agroecológicos do Vale do Guadiana,
– A criação de residências científicas, artísticas e culturais,
– A criação de um programa de visitação técnica, científica e cultural especializado,
– A formação de uma plataforma interuniversitária de crowdsourcing e crowdfunding.

No final teremos à nossa escolha quatro grandes abordagens ao território em questão:

– Uma abordagem do tipo “cuidados paliativos” à espera de uma morte anunciada,
– Uma abordagem de “mitigação e adaptação” com recursos exíguos na área do ambiente,
– Uma abordagem estritamente técnico-científica alimentada por candidaturas sucessivas a programas de investigação científica,
– Uma abordagem integrada visando a construção social de um território inteligente e criativo, internacionalizado e suportado por uma plataforma de crowdsourcing, crowdlearning e crowdfunding e administrada por um ator-rede dedicado à sub-região.

Como disse, reconheço que não é uma tarefa fácil, no entanto, quero crer que esta “dupla do património”, conduzida com inteligência e criatividade, pode alimentar muitos roteiros e bastante visitação e nessa medida ser a porta de entrada para a 2ª ruralidade e uma nova geração de neorurais. Não é impossível, quem sabe!

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

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