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Sul InformaçãoGeorge W. Bush, na altura presidente dos Estados Unidos da América, enfrentou, em Agosto de 2002, na sequência de uma seca rigorosa, uma proliferação anormal de fogos que assolou o Noroeste da sua nação.

Para prevenir a repetição de tais calamidades, subscreveu um plano que, profundamente inspirado por conselhos das empresas madeireiras, apostava na gestão de combustível dando carta-branca ao abate, muitas vezes indiscriminado, de largas manchas de floresta, o que naquele país se mede às centenas ou milhares de hectares.

Sem árvores, não há fogos, como é lógico. Uma espécie de nó górdio da floresta, em que, matando-se o bicho, acaba-se a peçonha.

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Nós por cá também parecemos dar passos nesse sentido, embora com opções de trajecto distintas.

Porque também por cá andamos aflitos com os fogos, cuja magnitude explosiva representa o recheio do paiol de erros que temos vindo a cometer, fundamentalmente ao nível do ordenamento do território, urge encontrar não tanto paliativos e mezinhas ao nível do combate, mas sim soluções preventivas ao nível dos desequilíbrios e assimetrias territoriais e despovoamento das áreas rurais e interiores.

O Algarve, cujos olhos estão um tanto ou quanto turvados pelo inebriante opiáceo que é o turismo, está também a pensar o que fazer com o seu interior, que olimpicamente votou ao esquecimento.

Talvez devido a essa nebulosidade ocular, e a um vício de forma, torna-se incapaz de ver qualquer outra coisa que não seja o modelo turístico, e assente na trindade betão, relva e asfalto, sempre presidido pelo mito do uso balnear.

Junte-se a isso os complexos de inferioridade ainda hoje associados à interioridade, principalmente por parte de todos aqueles que se deixaram convencer que serranias, valados, corgos e várzeas eram coisa de saloios, e temos que a solução prescrita para o interior ostracizado, qual Prozac paisagístico, é a importação dos modelos litorais, cheios de água e bling, de resorts e afins, agora em versões onde se pode brincar aos camponeses e serrenhos, até eventualmente varejando uma alfarrobeira ou outra.

Lá ficam depois, quais delicatessen paisagísticas, largadas como gomas de ursinhos num saco de grão-de-bico: muito bonitas, com o seu sabor, eventualmente boas para um toque de sobremesa, mas que não servem a receita do jantar.

De resto, quem quiser uma amostra do respeito que este modelo tem pelas valiosas paisagens que, em arrebatadas juras de amor, promete honrar e perpetuar, dê um saltinho às obras em curso na Quinta da Ombria, em Querença, e tente, se conseguir, reconhecer o local que ali outrora houve.

Não que aprendamos com os erros já cometidos. Na verdade, longe disso.

Recentemente, até o concelho de São Brás de Alportel, que tem resistido heroicamente, qual aldeia de Asterix, aos cantos de sereia das grandes asneiradas territoriais, prepara-se para tirar os pés da terra.

Foi anunciado um firme e resoluto compromisso da autarquia em lutar pela construção de uma barragem de grande dimensão, destinada a represar a Ribeira de Alportel e alagar parte do seu vale, talvez engolindo a estação da biodiversidade ali existente.

Dizer que se trata de um projecto com mais de 30 anos, por si só, já seria demonstrativo do desajuste da ideia face à actualidade. De tal forma que já em 2007 foi revogado, em sede de alteração do Plano Director Municipal, o Núcleo de Desenvolvimento Turístico que a enquadrava.

Do processo em curso de revisão daquele instrumento de gestão territorial pouco se sabe, nomeadamente se vai recuperar tão peregrina ideia.

Mas o cenário piora ao pensar-se que é uma barragem supostamente para combate a incêndios, para recarga de aquíferos, rega e aproveitamento turístico, na proximidade de uma falha geológica, num sítio onde não há e haverá cada vez menos rio, desfasada do principal aquífero, onde nada há para regar, e para fazer praia e navegar num mar que é campo, em areias de xisto e seixo e ondas de estevas.

Legalmente desenquadradas, técnica e paisagisticamente questionáveis, onde vão afinal estas aspirações buscar suporte, ainda para mais quando a sua âncora é um pressuposto de descaracterização por substituição e profunda transformação da paisagem, e não na valorização, num exercício tremendo de negação de circunstância – alterações climáticas à cabeça – e substância?

Dizem os poetas – e devemos sempre escutar o que os poetas nos dizem – que “o sonho comanda a vida e que sempre que o Homem sonha o Mundo pula e avança ” e que o “Homem sonha, a obra nasce”.

Não se questiona então nem o sonhar nem o obrar, pois é de gente e de actividade que precisamos, mas antes a natureza do sonho, da obra sonhada e da actividade pretendida, num caso que não é causa mas apenas sintoma.

Sintoma de uma visão construída de fora para dentro, para ser vista e não realmente vivida. Mais grave, um convite à visitação em que é preciso travestir e mentir. Em que é preciso construir uma mentira absoluta, pois é do que se trata. Uma paisagem reinventada de raiz, à força de régua e esquadro, de água que não temos, em modelos que não são os nossos, numa roupagem de litoral atlântico imposta ao que é na verdade interior mediterrânico.

Quereriam os poetas na verdade dizer que “o balnear comanda a vida e que sempre que o Homem chapinha o Mundo pula e dança”?

Que turismo é este que afinal, e apesar de tudo, ainda perseguimos? Apesar de todos os discursos de identidade e raízes – torna-se cada vez mais irónica a comemoração em Portugal do Dia Internacional da Paisagem, e vai ainda na primeira edição – procura-se a aplicação da receita McDonald’s: estereotipada, estéril justamente de identidade, normalizada, igual em qualquer parte do mundo. É o conforto e a familiaridade pelo amorfismo, pela ausência da diferença, do sobressalto e da surpresa que são, afinal, o sortilégio do acto de viajar.

É promover o Algarve convidando as pessoas a visitarem-no com a promessa de nem se aperceberem de cá estar.
Ainda há pouco tempo, em Portimão, uma autarca afirmou, no anúncio de mais um mega-resort-salvador-da-pátria-ao-estilo-do-este-é-que-vai-ser-do-camandro-apesar-de-igual-a-tantos-outros, estarmos perante um “upgrade” do seu concelho.

Serão as nossas raízes, e as paisagens que as traduzem, assim tão “downgradadas” sem este tipo de epifanias territoriais?

Afinal, não são apenas de fogo as labaredas que queimam a essência do mediterrânico algarvio.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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