«Há por aí muitos filhos do hipericão», disse o botânico João Farmilhão, segurando na mão uma flor amarela de Hypericum perforatum e arrancando, ao mesmo tempo, uma gargalhada da sua atenta audiência.
É que, explicou, esta planta, muito utilizada nas mezinhas, tem de ser usada com cuidado, «devido às interações com medicamentos, nomeadamente com a pílula», já que diminui a sua eficácia.
Esta foi uma das muitas informações preciosas que o botânico e investigador da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, de forma simples e clara, transmitiu aos participantes da atividade de salvaguarda do património do Festival Terras sem Sombra, em plena Serra de São Mamede, frente à vila de Castelo de Vide.
«Entre a Medicina e a Gastronomia: Plantas Terapêuticas e Aromáticas da Serra de São Mamede» era a proposta e, mesmo numa manhã de domingo de muito calor, num curto percurso de um quilómetro, foi isso que os participantes obtiveram.
No fim de semana de 7 e 8 de Junho, o Festival Terras sem Sombra, que vai percorrendo diversas localidades do Alentejo profundo, rumou a Castelo de Vide, terra do médico e botânico do século XVI Garcia de Orta.
João Farminhão recordou esse seu colega de há 500 anos, dizendo que algumas das espécies que ocorrem na Serra de São Mamede, fruto da sua geologia e geografia, que deram origem a uma vegetação singular, «podem ter sido observadas por Garcia de Orta», sugerindo «uma continuidade no uso e conhecimento das plantas medicinais na região».









Hipericão

Dedaleira

Dedaleira

esporas-bravas

Giesta-azul

Giesta-azul

Urze


Cistus hirsutus

olho-de-perdiz

olho-de-perdiz
Pelo caminho, enquanto os grifos (Gyps fulvus) sobrevoavam o grupo, João Farminhão foi falando das várias plantas – a cravina-portuguesa (Dianthus caryophyllus) «típica destes ambientes agrestes», a uva-de-gato (Cissus incisa), planta trepadeira utilizada em medicina tradicional para tratar dores articulares, a escabiosa (Scabiosa spp.), uma planta com flores que parecem uma escova, o cardo-de-Salamanca ou serrinha (Centaurea salmantica), a dedaleira (Digitalis spp.), as esporas-bravas, que são uma linária (Linaria triornithophora), a giesta-azul, que nem sequer é uma giesta e é uma das plantas preferidas do decano da botânica Jorge Paiva (Polygala microphylla), o suspiro-roxo (Sixalix atropurpurea), a a perpétua-das-areias (Helichrysum stoechas).
Destacou ainda o facto de aquela serra, classificada como Parque Natural, ter um coberto florestal onde pontifica o carvalhal, formado por carvalho-negral (Quercus pyrenaica), cujas características mostrou, com destaque para o interior felpudo das folhas.
Farminhão enfatizou a «importância de conhecer e preservar essas espécies, não apenas pelo seu valor medicinal e gastronómico, mas também devido ao papel ecológico que desempenham na Serra de São Mamede».
Esta serra, acrescentou, tem uma «flora muito peculiar, adaptada a condições de crescimento muito exigentes», em que é necessário haver «economia de água». Daí o facto de haver muitas suculentas, bem como plantas «com compostos aromáticos, que também lhes permitem economizar água».
«Do ponto de vista biológico, já não estamos, de facto, no Alentejo, mas nos montes de Toledo», a «designação fito-biológica» desta vasta região onde se situa a Serra de São Mamede, com as suas plantas endémicas, disse ainda João Farmilhão.

Visita guiada por Teresa Nobre de Carvalho









Garcia de Orta, segundo a escultura de João Cutileiro

Teresa Nobre de Carvalho
Mas este fim de semana em Castelo de Vide tinha começado na tarde de sábado, com uma visita ao pequeno, mas interessante, museu dedicado a Garcia de Orta, que funciona no edifício das antigas termas da vila.
A visita foi guiada por Teresa Nobre de Carvalho, da Universidade Nova de Lisboa e curadora da exposição, que falou sore o percurso de vida do médico português do século XVI, verdadeiro homem do Renascimento que se tornaria numa das principais figuras da botânica quinhentista na Europa, com a sua obra seminal «Colóquios dos Simples e Drogas da Índia» (1563), escrita em Goa e que teve sucessivas edições em diferentes línguas.






Depois, ainda antes do concerto da noite – ponto alto do Festival Terras sem Sombra -, teve lugar uma receção, para convidados, por ocasião do Dia da Independência das Filipinas, no átrio frente à Câmara Municipal de Castelo de Vide.
A convite do embaixador das Filipinas em Lisboa, Paul Raymund P. Cortes, e tendo como convidado de honra o presidente da Câmara António Pita, a receção começou com um diálogo de músicas – de um lado a banda Bandustika, de Castelo de Vide, a quem respondeu o coro The Philippine Madrigal Singers, só para abrir o apetite para o concerto dessa noite.
Como não podia deixar de ser, a receção, marcada pelo ambiente de boa disposição, incluiu gastronomia – das Filipinas e do Alentejo – e teve até direito a um vinho especial para assinalar o Dia da Independência daquele país da Ásia.
Mas o que é que têm as Filipinas a ver com o Festival Terras sem Sombra e com Castelo de Vide? Este que é o maior país católico da Ásia (e um dos maiores do mundo) é, em 2025, o convidado deste festival que leva a grande música ao Alentejo.
Além disso, como salientou o presidente da Câmara António Pita, Castelo de Vide é a terra natal de Garcia de Orta, que deu a conhecer à Europa os segredos das novas plantas descobertas na Ásia, nesses tempos longínquos do vibrante século XVI.
Ligações que o embaixador Paul Raymund P. Cortes fez questão de sublinhar, ao escolher Castelo de Vide para assinalar o Dia Nacional do seu país. Aliás, como frisou o diplomata, foi a primeira vez que tais comemorações, em Portugal, tiveram lugar fora de Lisboa.
Por seu lado, José António Falcão, diretor-geral do Terras sem Sombra, sublinhou o «momento único a criar pontes entre duas culturas, a portuguesa e a filipina, numa das mais fantásticas vilas do nosso país».

















À noite, a ampla Igreja Matriz de Castelo de Vide foi pequena para acolher todas as pessoas – e foram largas centenas – que quiseram ouvir um dos melhores grupos corais do mundo, The Philippine Madrigal Singers.
Com uma disposição das vozes diferente de um grupo coral do Ocidente, alternando homens e mulheres, todos sentados, o programa apresentado navegou por canções religiosas e tradicionais filipinas, servidas pelo extraordinário conjunto de vozes.
Algumas músicas eram pontuadas por gestos elegantes, outras por instrumentos filipinos, outras ainda eram cantadas por solistas.
Mesmo não percebendo o que era cantado, a audiência vibrou e reagiu à beleza das composições e à harmonia das interpretações, aplaudindo de forma entusiástica.
E foi de maneira muito bem-disposta, entre aplausos e gargalhadas, que The Philippine Madrigal Singers terminaram, interpretando a canção “Da Coconut Nut”, composta pelo seu compatriota filipino Ryan Cayabyab em 1991. Uma canção que, com o seu ritmo tropical e letra divertida, se tornou um êxito instantâneo, interpretado em todo o mundo… até na igreja de Castelo de Vide.
No fim, um casal de motards portugueses que tinha descoberto o concerto por acaso, comentou: «foi uma maravilhosa surpresa!»

António Pita a acabar de preparar a sopa de "pêxe"





No domingo, depois do percurso a pé à descoberta da flora da Serra de São Mamede, mas apenas para os convidados portugueses e filipinos, à sombra das grandes árvores do Jardim Municipal, foi o próprio presidente da Câmara que acabou de preparar e serviu uma comida típica de Castelo de Vide: uma sopa de peixe… ou «de pêxe», como por lá se diz.
Feita com peixes do rio Sever, que nasce ali na serra e desagua no Tejo, marcando grande parte da fronteira entre o distrito de Portalegre e Espanha, esta sopa era feita «por homens», como os guardas fiscais que vigiavam a raia.
Usando os produtos da sua horta e os peixes que pescavam no Sever – barbo, carpa e lucioperca –, perfumada com orégão e outras ervas, o resultado era uma sopa olorosa e cheia de sabor.
Neste almoço tendo como anfitrião o autarca António Pita, não faltaram a carpa grelhada com molho de azeite, alho e ervas -uma delícia – ou o lucioperca, bem fritinho, além dos queijos e enchidos da zona.
Se a ideia era mostrar aos cantores e diplomatas filipinos que o Alentejo sabe receber muito bem e que o Festival Terras sem Sombra é algo muito à parte, o objetivo foi plenamente conseguido.
Depois de este fim de semana estar em Mourão, o festival ruma, no fim de semana de 8 e 9 de Julho, a Ferreira do Alentejo. E, de novo, com um programa que junta música, património e biodiversidade. Clique aqui para conhecer a programação.
Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação
(à exceção das fotos do concerto que são da autoria de Mabille Adrianne | Festival Terras sem Sombra)
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