O crescimento do partido Chega transformou, em poucos anos, o sistema político português. Com uma retórica agressiva, populista, divisionista e securitária, esse partido ocupou um espaço que os tradicionais e muitos analistas erradamente consideravam marginal.
Nas eleições legislativas de 2025, o Chega alcançou 22,56% dos votos e 60 deputados eleitos, tornando-se numa das forças políticas com maior expressão no país e na Assembleia da República, vencendo em regiões inteiras e atraindo eleitorado popular, rural e urbano.
Frente ao progressivo crescimento do Chega, as forças políticas do designado “arco da governação” adotaram uma estratégia de distanciamento e rejeição face aos conteúdos programáticos e à postura institucional do partido.
Esta aposta, no entanto, não tem surtido o efeito esperado.
O Chega continua a crescer, impondo uma pergunta incontornável: poderá o essencial estar a escapar aos partidos do poder? Procurarei responder a esta questão ao longo das linhas que se seguem.
O combate moral é necessário, mas insuficiente
A atitude dominante das principais forças políticas perante o Chega tem sido de condenação moral.
Sentenciam o discurso xenófobo e racista, as propostas autoritárias, a agressividade verbal, o desprezo pelas instituições democráticas e pelos direitos fundamentais.
Esta condenação é indispensável e deve ser firme e clara. No entanto, ela tem-se revelado insuficiente como resposta política.
Muitos dos eleitores do Chega não se reveem na sua ideologia, mas votam nele por frustração, desilusão ou protesto.
O discurso moralizante dos partidos do poder pode ser percebido por estes cidadãos como uma nova forma de elitismo: em vez de ouvirem as suas queixas, limitam-se a dizer-lhes que estão errados.
No entendimento de muitos, é aqui que o Chega progride, pois aparece como o único partido que, segundo esses, “diz a verdade” e “diz o que o povo sente”, mesmo que cometa abusos.
O vazio político: como o Chega ocupa os “territórios abandonados”
O crescimento do Chega expõe um problema bem mais profundo: a erosão da presença política dos partidos tradicionais nos territórios mais frágeis.
Durante décadas, PS e PSD foram-se afastando dos territórios rurais, das periferias urbanas, das regiões empobrecidas. Muitas secções perderam vitalidade e relevância nacional.
Diversos eleitos locais ficaram isolados e algumas estruturas intermédias deixaram de estar à escuta.
Neste vazio, surgem movimentos que exploram o ressentimento social. O Chega não é só um partido com presença mediática; é também uma estrutura que aprendeu a capitalizar a ausência dos outros.
Onde o Estado falha na prestação de serviços, onde os salários são reduzidos, onde a habitação é inatingível e onde os partidos tradicionais se mostram ausentes ou indiferentes, cresce o voto no Chega.
Esta visão do “problema” leva a considerar que existem alguns fatores essenciais que podem estar a escapar às principais forças do regime democrático, dos quais destaco:
- O desprezo por uma atitude de escuta ativa, que permita compreender verdadeiramente o descontentamento social sem o desqualificar como “corporativista”, “sindical” ou “populista”. Esta postura tende a ignorar que há uma parte do país que não se sente representada por ninguém;
- A perda de presença territorial e dos laços de proximidade. Sem contacto direto e contínuo com a realidade das pessoas, a política tornou-se distante, institucionalizada e, aos olhos de muitos, autocentrada e elitista;
- A ausência de um projeto mobilizador. O discurso político tem primado por narrativas excessivamente tecnocratas e reativas, construídas para auditórios televisivos e para as redes sociais. Para muitas pessoas parece faltar uma visão clara de futuro, um discurso mobilizador, uma promessa coletiva que vá além da mera gestão do Estado e do poder.

As vidas que não saem da “cepa torta”
Uma análise cruzada dos indicadores concelhios de qualidade de vida[1], com os resultados das eleições legislativas de 2025, em particular da votação percentual obtida pelo Chega, permite extrair algumas reflexões, calcular correlações e identificar padrões territoriais de maior ou menor adesão ao discurso da extrema-direita.
Os resultados desta análise apontam para uma correlação negativa moderada entre a votação no Chega e os indicadores de qualidade de vida. Isto significa que, em geral, os concelhos que apresentam melhores condições de vida – medidas por níveis de rendimento, emprego, acesso a serviços e formação escolar – tendem a votar menos neste partido.
Esta tendência é ainda mais evidente quando se analisa o índice de dinamismo económico, reforçando a hipótese de que a insegurança financeira dos indivíduos poderá ser um dos fatores que alimentam a adesão a discursos populistas e autoritários.
Por outro lado, concelhos com piores indicadores socioeconómicos – especialmente no interior do país, em territórios com população envelhecida, maior taxa de abandono escolar e menor capacidade de atrair investimento – registam frequentemente votações acima da média nacional.
Esta distribuição territorial do voto extremista parece dar continuidade a um padrão identificado noutros países europeus, onde o populismo de extrema-direita se instala com mais força em contextos de descontentamento social, fragilidade institucional e perceção de abandono pelo Estado.
Por comparação, Oeiras, Lisboa, Porto e Coimbra são exemplos de concelhos com indicadores de qualidade de vida elevados e com votação no Chega significativamente abaixo da média nacional.
Em contraste, nos 29 concelhos[2] onde ultrapassou a fasquia de 30% dos votos, sendo o vencedor das eleições, verifica-se um padrão consistente de associação entre baixos indicadores de desenvolvimento socioeconómico e elevados níveis de votação no partido.
Os dados analisados incidem sobre três dimensões: rendimento médio mensal, taxa de desemprego e nível de escolaridade superior.
Na análise em apreço verifica-se uma correlação negativa moderada entre o rendimento médio da população e a votação no Chega.
Em geral, os concelhos com rendimentos mais baixos – como Mourão, Sousel ou Alter do Chão – registam votações mais expressivas no partido.
Este padrão sugere que a preferência dos eleitores por esta força política tende a ser mais forte em territórios com menor capacidade económica e maiores níveis de vulnerabilidade financeira.
A análise evidencia também uma correlação positiva entre a taxa de desemprego e a votação no Chega. Concelhos com taxas de desemprego mais elevadas apresentam, de forma sistemática, níveis mais altos de apoio eleitoral ao partido.
Esta tendência reforça a ideia de que o voto no Chega pode ser interpretado como expressão de descontentamento em contextos de precariedade laboral e insegurança social.
Constata-se ainda uma correlação negativa clara entre a percentagem de população com ensino superior e a votação no Chega.
Concelhos com níveis mais baixos de qualificação escolar – como Monforte, Fronteira ou Constância – tendem a votar mais no partido, significando isso que existe uma maior recetividade ao discurso populista entre populações com menor escolaridade, menos acesso à informação qualificada e menor literacia política.
Em síntese, a análise permite concluir que nos concelhos onde o Chega alcança os seus melhores resultados observam-se frequentemente três fragilidades cumulativas: baixo rendimento, elevado desemprego e fraca qualificação escolar.
Estes dados dão força à tese de que o Chega cresce em territórios onde o sentimento de abandono, de perda de oportunidades e de ausência do Estado democrático é mais intenso.
Mais do que um fenómeno meramente ideológico, o voto no Chega emerge como um sintoma territorial de desigualdade e exclusão, exigindo respostas políticas estruturantes que devolvam dignidade, reconhecimento e perspetivas de futuro a estas comunidades.

O caso do Algarve
A análise dos concelhos do Algarve, onde o partido Chega foi o mais votado[3], também permite identificar padrões territoriais relevantes que ajudam a compreender o enraizamento deste fenómeno político na região.
A variável com maior correlação positiva na amostra é a dos estrangeiros residentes, que em alguns concelhos ultrapassa os 20% do total da população.
Os dados evidenciam que uma maior presença de imigrantes coincide com a maior votação no Chega. Esta correlação não significa necessariamente rejeição direta, mas poderá traduzir perceções de concorrência no acesso à habitação, aos serviços públicos ou ao mercado de trabalho, particularmente em setores mais pressionados como a construção civil, a agricultura e o turismo.
Os concelhos analisados apresentam, em geral, níveis de rendimento médio superiores à média nacional, refletindo a economia regional impulsionada pelo turismo.
Contudo, essa prosperidade média não impede votações elevadas no Chega. Este dado sugere que, no Algarve, a adesão a este partido não está diretamente associada à pobreza absoluta, mas antes a desigualdades internas, a bolsas significativas de pobreza, a exclusões invisíveis e um sentimento de injustiça social.
As populações que não beneficiam diretamente de uma certa prosperidade económica da região podem sentir que os ganhos são desigualmente distribuídos, o que alimenta ressentimento e frustração.
Outro dos fatores críticos que ajuda a compreender o desconforto social no Algarve é a explosão dos preços da habitação, resultado de uma combinação entre pressão turística, especulação imobiliária, proliferação do alojamento local e forte procura por parte de estrangeiros com maior poder de compra.
Em alguns concelhos, os preços médios por metro quadrado e os valores de arrendamento ultrapassam largamente a capacidade financeira das famílias, sobretudo daquelas com rendimentos baixos ou instáveis.
Para muitos residentes, o acesso à habitação nunca foi um direito garantido, o que contribui para um sentimento de exclusão dentro do seu próprio território, criando terreno fértil para o voto de protesto, que o Chega tem sabido capitalizar.
Alguns dos concelhos do Algarve com maior votação no partido apresentam taxas de desemprego mais elevadas do que a média regional.
Ainda que a correlação não seja muito forte, ela indica que a precariedade laboral e a insegurança económica são combustíveis políticos e funcionam como fatores de mobilização para o voto de contestação.
Neste contexto, o discurso do Chega, centrado na crítica às instituições e à “injustiça do sistema”, ganha particular tração.
Por fim, verifica-se também uma correlação negativa entre o nível de escolaridade e a adesão ao Chega. Concelhos com menor proporção de população com formação superior tendem a apresentar maior apoio ao partido, significando isso que níveis mais baixos de literacia política e menor acesso à informação qualificada são fatores que facilitam a simpatia com discursos populistas, simplificadores e polarizadores.
Em síntese, o voto no Chega, no Algarve, pode resultar de uma conjugação de fatores económicos, sociais e identitários. A presença de comunidades imigrantes, as estruturais dificuldades no acesso à habitação, os efeitos sociais do turismo, a precaridade, as desigualdades internas e a baixa escolaridade em certos territórios constroem o terreno propício para a ascensão de um discurso populista e punitivo.
Mais do que um fenómeno marginal, o Chega afirma-se como uma força que explora clivagens latentes e capitaliza o mal-estar social onde o Estado é sentido como ausente.
A resposta não pode ser apenas de rejeição – deve incluir políticas públicas territoriais, inclusivas e redistributivas, que devolvam dignidade, sentimento de pertença e confiança às populações.
Compreender não é legitimar: o Chega não é solução
Compreender as razões do crescimento do Chega é essencial para qualquer análise séria da democracia portuguesa. Mas é igualmente fundamental afirmar com clareza: o Chega não é e nunca vai ser a resposta aos problemas que denuncia.
O partido construiu a sua ascensão sobre o mal-estar social, o medo e a indignação legítima de muitos cidadãos, mas em vez de canalizar esse descontentamento para uma proposta de transformação construtiva, o Chega converte-o em fúria, em exclusão e em divisão.
Do ponto de vista ideológico, o partido defende posições autoritárias, regressivas e incompatíveis com os princípios democráticos e constitucionais. Propõe o enfraquecimento dos direitos humanos, a perseguição de minorias e a substituição da justiça pela vingança.
Do ponto de vista programático, apresenta respostas simplistas para problemas complexos, baseadas na repressão, no corte de direitos e na estigmatização de grupos vulneráveis. Estas propostas não apenas são ineficazes, como agravariam as desigualdades e as tensões sociais.
No plano simbólico, o Chega banaliza o discurso de ódio, ataca sistematicamente a diferença e promove um estilo de comunicação que destrói a confiança entre os cidadãos e entre estes e as instituições. O seu objetivo não é construir, mas destruir o que existe, sem apresentar alternativa viável.
Por tudo isto, é fundamental dizer com firmeza: o Chega não é solução. É parte do problema. É o produto de um sistema que evidencia falhas significativas na capacidade de ouvir, de proteger e de incluir, mas a sua resposta é uma promessa falsa que conduz a mais exclusão, mais injustiça e menos democracia.

Tirar a cabeça da areia e construir novas respostas democráticas
Combater o crescimento do Chega não passa simplesmente por rejeitá-lo. O partido cresce onde a esperança desaparece. Afirma-se onde o Estado não chega, onde a vida é mais dura e onde a política deixou de tocar as pessoas.
É urgente compreender que não se combate o populismo com tecnocracia, nem o ressentimento com moralismo. A única resposta sustentável está em fazer com que a democracia volte a ser sentida como lugar de pertença, de justiça e de possibilidade.
Não basta ter uma narrativa de defesa da democracia. É preciso fazer com que as pessoas sintam que esta também as defende.
Por tudo isto é necessário entender a política como exercício de reencontro. É urgente reconstruir o pacto democrático em torno de seis eixos fundamentais:
- Justiça territorial e coesão social. Um programa que devolva dignidade aos territórios desfavorecidos, com investimento público, serviços de qualidade e políticas que combatam as assimetrias;
- Direito à habitação digna. Uma estratégia robusta de habitação acessível que caminhe a par de uma maior regulação do mercado e do combate à especulação;
- Revalorização do trabalho. Uma aposta no respeito por quem trabalha e combata a precariedade e os baixos salários;
- Reforma da justiça. O país necessita de um sistema judicial mais célere, acessível, eficaz e sem agenda política, capaz de reconstruir a confiança dos cidadãos;
- Promoção da cidadania ativa. A democracia precisa de ir muito além dos votos periódicos. A participação pública efetiva deve ser incentivada, valorizada e institucionalizada como parte de uma cultura política inclusiva;
- Reencantamento da política. A democracia precisa de voltar a falar ao coração das pessoas, à esperança e ao futuro. Precisa de líderes que inspirem e projetos que mobilizem.
A força do Chega não reside na qualidade das suas propostas, mas no aproveitamento de fragilidades acumuladas por um sistema que, em muitas circunstâncias, não conseguiu proteger, escutar ou representar plenamente os cidadãos.
O populismo ganha terreno onde a democracia mostra sinais de cansaço ou distância. Por isso, defendê-la hoje exige transformá-la com ambição, coragem e sentido de urgência. O tempo de adiar acabou.
[1] Organizados pela Marktest, em 2024, e que resultam de um índice composto que agrega 39 variáveis, distribuídas por três dimensões fundamentais: dinamismo demográfico, dinamismo económico e qualidade de vida.
[2] Peniche (30,3%), Benavente (36,3%), Salvaterra de Magos (36,2%), Almeirim (31,8%), Montijo (31,4%), Palmela (30,3%), Sesimbra (31,0%), Constância (32,7%), Ponte de Sôr (30,2%), Alter do Chão (30,6%), Fronteira (31,6%), Sousel (32,5%), Monforte (34,7%), Elvas (43,5%), Campo Maior (33,4%), Reguengos de Monsaraz (31,6%), Mourão (31,9%), Moura (36,7%), Barrancos (31,0%), Viana do Alentejo (30,1%), Lagos (31,6%), Portimão (36,8%), Lagoa (39,7%), Silves (37,6%), Albufeira (39,4%), Loulé (33,5%), Olhão (37,5%), Vila Real de Santo António (38,6%) e Castro Marim (36,1%).
[3] Com votações superiores a 30% em alguns concelhos e, em certos casos, próximas dos 40%.
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