Gaza é hoje o lugar onde a História se dobra sobre si mesma.
Desde que o mundo moderno se decidiu a cartografar conflitos que Gaza se tornou uma ferida aberta: uma geografia de sobrevivência, resistência e repetição.
A história é longa e, para muitos, já conhecida. Em 1948, a criação do Estado de Israel implicou o deslocamento forçado de centenas de milhares de palestinianos e deu origem a um movimento de refugiados que anda na ordem de três milhões e meio de pessoas que tiveram mesmo de fugir da região. Chamaram-lhe Nakba, a catástrofe. Foram destruídas mais de uma dezena de cidades palestinianas, quase quatrocentas aldeias.
Desde então, Gaza passou de refúgio a campo de cerco. São 365 km² de território onde vivem mais de dois milhões de pessoas. O bloqueio imposto por Israel e Egito desde 2007 transformou a Faixa numa prisão a céu aberto, sem controlo de fronteiras, mar ou espaço aéreo.
Nos últimos meses, a tragédia ganhou contornos ainda mais brutais. Após o ataque do Hamas a 7 de outubro de 2023, Israel lançou uma ofensiva sem precedentes sobre Gaza, alegando o direito à autodefesa. O que se seguiu foi um rasto de destruição que deixou bairros inteiros reduzidos a escombros, hospitais sem combustível, crianças sem nome e corpos sem dignidade. A guerra, como sempre, come primeiro os inocentes.
Contam-se os mortos aos milhares, mas ninguém conta os órfãos, os amputados. Numa era de vigilância global, as imagens circulam: um pai a segurar o que resta do filho, uma mãe a arrastar uma mala onde guarda documentos e retratos, crianças a brincar entre ruínas porque não conhecem outra paisagem. A vida em Gaza é um testemunho do que acontece quando o mundo vê, mas não quer realmente ver.
Gaza transformou-se na memória do sofrimento que se tornou, para muitos, a justificação do domínio. Onde o passado diz «nunca mais», mas o presente grita «outra vez», com os papéis trocados.
O Holocausto foi a face mais sombria da desumanização sistemática. Milhões de judeus foram perseguidos, torturados e exterminados. Em nome da raça, da pureza, da ordem. O mundo jurou não esquecer e não deve esquecer. Mas há um paradoxo que não podemos ignorar: como pôde um povo que sofreu na pele a lógica da exclusão tornar-se, através de uma ideologia política como o sionismo, num Estado que hoje opera mecanismos de opressão sistemática sobre outro povo?
O sionismo, na sua origem, era um movimento que aspirava à criação de um lar seguro para os Judeus. Compreensível, legítimo, urgente até. Mas, com o tempo, transformou-se — em parte — numa ideologia de colonização e de ocupação, que confunde identidade nacional com exclusão étnica, um projeto ideológico político que implica também o revivalismo do Hebraico enquanto língua (que era uma língua morta, tal como o Latim), que aponta os Judeus como o povo escolhido por Deus (que os leva a uma ideia de supremacia racial) e que legitima a partir daí o direito à terra palestiniana.
E é neste ponto que Gaza se torna insuportável: porque expõe a ferida nunca curada de um projeto político que insiste em ver os Palestinianos como um obstáculo, como um problema, como se fossem menos humanos.
Há, de facto, um sentimento de superioridade que atravessa o discurso político de parte da liderança israelita. Uma ideia de que o outro, neste caso, o palestiniano, não é sujeito de direitos, mas apenas contexto. «Terrorista em potência», «população radicalizada», «riscos colaterais», «animais que merecem morrer, serem abatidos». Frases que desumanizam, que tornam aceitável o inaceitável. O direito à segurança, legítimo, não pode justificar o apagamento deliberado da existência de um povo inteiro.
O silêncio internacional também tem o seu peso. Portugal ainda não reconheceu oficialmente o Estado da Palestina. Que se espere tanto por um gesto que deveria ser óbvio diz muito sobre a forma como os Palestinianos continuam a ser vistos: como um povo a quem se pode adiar tudo, até o direito à existência. Espanha, Irlanda e Noruega deram recentemente esse passo. Outros hesitam, como se o reconhecimento da Palestina fosse uma ofensa e não um imperativo de justiça.
É desconcertante como, em pleno século XXI, se naturalizou a ideia de que há povos que podem viver décadas sob ocupação, cerco e bombardeamento, enquanto se discute, com diplomacia lenta, se merecem ou não ter um Estado. Não é apenas uma questão política, é uma questão moral: é o valor da vida humana que está em causa. Gaza tornou-se o lugar onde testamos os limites da nossa empatia.
Mas, apesar de tudo, Gaza resiste. Entre escombros, poços secos e noites sem luz, há ainda quem ensine, quem escreva, quem cuide. Há uma dignidade que nenhum drone pode apagar, uma cultura viva, uma história milenar, um povo inteiro que não quer desaparecer.
É preciso que o mundo acorde, que Portugal e os restantes países da União Europeia deixem de lado o medo de represálias diplomáticas e façam o que é certo. Reconhecer o Estado da Palestina não é um gesto contra ninguém, é um gesto a favor de todos. É reconhecer que a justiça não pode ser unilateral; que a paz verdadeira não nasce da superioridade, mas do reconhecimento mútuo.
Gaza é hoje o espelho onde nos vemos e o que vemos não é nada, nada bonito, mas ainda vamos a tempo de mudar. Se quisermos, podemos fazer da memória do Holocausto não um escudo para justificar o poder, mas uma bússola para orientar a compaixão. A História não se vinga, ensina. E está, neste momento, a olhar para nós.
Obrigado por fazer parte desta missão!