A forma como organizamos os cuidados de saúde tem impacto direto na saúde das pessoas, sobretudo em territórios marcados por dispersão geográfica e carência estrutural. No Algarve, uma região com densidade populacional assimétrica e problemas antigos de acesso aos serviços hospitalares, a aposta recente em consultas descentralizadas representa mais do que uma reorganização logística: é uma intervenção concreta na equidade do sistema.
A informação da Unidade Local de Saúde (ULS) do Algarve, que dá conta de mais de 6 mil consultas de especialidade realizadas em centros de saúde periféricos só nos primeiros quatro meses de 2025, não é apenas um indicador de produtividade, é um sinal de que o Serviço Nacional de Saúde está a adaptar-se, ainda que lentamente, às necessidades reais da população.
Durante décadas, a centralização dos cuidados hospitalares esteve associada a maior diferenciação técnica e à concentração de recursos humanos.
No entanto, essa estratégia trouxe também uma consequência inevitável: obrigou milhares de utentes a percorrer longas distâncias para aceder a uma consulta de especialidade. Em muitos casos, especialmente entre idosos, pessoas com mobilidade reduzida ou famílias com baixos rendimentos, essas deslocações tornaram-se uma barreira intransponível.
A ideia de aproximar a Cardiologia, a Oncologia ou os Cuidados Paliativos das comunidades locais pode parecer simples, mas exige planeamento, equipas dedicadas e uma visão moderna da prestação de cuidados.
Os números falam por si: 6.381 consultas descentralizadas em apenas quatro meses, face a 18.127 em todo o ano de 2024, sugerem não só uma aceleração na implementação como também uma crescente aceitação por parte da população e dos profissionais.
A abrangência territorial (já presente em 13 dos 16 concelhos algarvios) indica que este modelo não está restrito a experiências-piloto, mas a ser tratado como uma estratégia estrutural. E é assim que deve ser.
A saúde de proximidade não é uma moda; é um imperativo funcional de um país que envelhece, que se desertifica em algumas zonas e que continua a enfrentar desigualdades inaceitáveis no acesso à saúde.
O exemplo de Almancil, onde recomeçaram as consultas de Cardiologia com o regresso do médico especialista, mostra que a viabilidade das consultas descentralizadas depende também da gestão inteligente dos recursos humanos.
Não se trata apenas de levar o especialista ao interior, mas de garantir que esse movimento não compromete a qualidade nem a continuidade do cuidado. Para isso, é essencial uma articulação fina entre as unidades hospitalares e os centros de saúde, sustentada por sistemas de informação interoperáveis, planeamento clínico adequado e, idealmente, um reforço das equipas de apoio local.
A expansão para áreas como Pediatria, Farmácia Oncológica ou Neurocirurgia descentralizada levanta, naturalmente, questões sobre os limites da complexidade clínica que pode ser gerida fora do hospital.
Mas a experiência internacional e os dados mais recentes indicam que grande parte da medicina especializada é compatível com modelos ambulatórios de proximidade, desde que existam condições técnicas, apoio diagnóstico e vias rápidas de referenciação para casos mais complexos.
Do ponto de vista da saúde pública, este modelo tem um efeito positivo direto sobre a equidade. Deixar de exigir que o doente se desloque, e colocar a resposta clínica mais próxima do seu local de vida, não é apenas uma questão de conforto.
É uma medida com impacto no diagnóstico atempado, na adesão terapêutica, na literacia em saúde e até na sustentabilidade do sistema, ao evitar episódios de urgência evitáveis.
Cada consulta descentralizada bem-sucedida é, potencialmente, um internamento que se evita, uma crise que se antecipa, uma vida que se cuida com maior dignidade, e todos (clínicos e população) agradecemos.
Obrigado por fazer parte desta missão!