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Houve um tempo em que o papado se confundia com coroas, tronos e ornamentos dourados. Um tempo em que a distância entre Roma e a Galileia era maior do que os quilómetros permitiriam supor.

Depois, chegou um homem que recusou o Palácio Apostólico para viver de forma comum, seguindo os princípios dos Jesuítas. Um homem que trocou o manto vermelho pela simplicidade e os sapatos Prada por uns ortopédicos gastos e não para parecer — mas para ser.

Francisco, o Papa que nunca desejou parecer um Papa, foi talvez o mais próximo da figura que lhe deu nome. Como São Francisco de Assis, também ele acreditava que a pobreza era uma forma de verdade e que o poder, sem serviço, era oco. Desfez-se dos tronos, dos gestos coreografados, da parafernália barroca que durante séculos confundiu santidade com espetáculo. E no ato de vestir-se como sempre se vestira — com o branco austero e os sapatos do dia a dia — ergueu um manifesto que nenhum discurso conseguiria marcar tão forte.

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Ao recusar os símbolos do poder institucionalizado da Igreja Católica Apostólica Romana, Francisco não rejeitou o papado; resgatou-o. Mostrou que a autoridade espiritual não precisa de brilhos nem de cortinas pesadas. Que o sagrado pode, e deve, andar descalço entre os homens; que o Papa pode ser, antes de tudo, irmão.

Enquanto outros se ergueram sobre doutrinas, ele baixou-se para ouvir. Enquanto outros definiram o Céu por exclusão, ele abriu os braços e repetiu como refrão: «Todos, todos, todos.» Rejeitou a ideia de uma fé blindada, feita de muros e exclusões. Escolheu uma Igreja em saída, como a chamou, suja de pó nas sandálias, mas viva.

Os críticos chamaram-lhe populista, marxista, revolucionário, mas Francisco apenas ousou ser cristão — no sentido mais nu e cru do termo.

— «É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus.»
(Lucas 18,25)

Fez da economia uma questão moral. Clamou pelos migrantes, pelos descartados, pelos que têm fome e sede de justiça. Denunciou um mundo que transforma o lucro em divindade e o humano em estatística. E nunca o fez do alto — fê-lo ao lado.

Quando recusou viver no Palácio, e preferiu a Casa Santa Marta, não foi um capricho de humildade. Foi uma escolha teológica: Deus habita onde há relação, não onde há mármore. E ali, entre refeições simples e corredores comuns, resgatou a ideia de comunidade como espaço sagrado. Como Jesus, que não teve onde reclinar a cabeça, Francisco também quis dizer: não é pelo poder que Deus se faz presente, mas pela ternura.

A sua estética não foi distração; foi mensagem. Não aboliu o símbolo — ressignificou-o. Transformou a indumentária papal numa linguagem da escuta. Os ornamentos, outrora sinal de transcendência, tornaram-se excesso. E o excesso, sabia, mata a presença — era preciso despir para se aproximar.

Hoje, olhamos para a sua figura e não vemos um homem que se impôs, mas um homem que serviu. Que foi Papa como quem lava os pés. Não quis deixar uma Igreja forte, mas uma Igreja fiel: fiel não à tradição pelo peso da história, mas à memória viva do Evangelho. Um Evangelho onde o primeiro é o último e onde o poder é sempre cruz, nunca pedestal.

— «Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós, se faça vosso servo. E o que quiser tornar-se entre vós o primeiro, se faça vosso escravo. Assim como o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos.»

(Mateus 20,26-28)

Francisco não foi o Papa da ortodoxia — foi o Papa da proximidade. E ao fazê-lo, resgatou a radicalidade simples e revolucionária de Jesus de Nazaré. No fim, talvez se diga dele o que os discípulos disseram daquele carpinteiro errante: «passou por entre nós… e ardeu-nos o coração».

Que fiquem os sapatos gastos como relíquia. E que caminhemos, descalços de vaidade, sobre as pegadas de um Papa que ousou ser servo. Que a sua caminhada não tenha sido em vão. E que o próximo Papa se lembre que os passos de Cristo nunca foram dados sobre tapetes vermelhos, mas sobre terra batida.

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  • Neste mundo de vaidades é tarefa hercúlea ser-se simples. Este Papa, conseguiu impor-se precisamente por caminhar ao lado do homem. Belo artigo!

  • Este foi um verdadeiro Papa – um Papa de proximidade e um exemplo de verdadeiro espírito cristão.
    Espero que, tal como a autora da crónica termina, o próximo “se lembre que os passos de Cristo nunca foram dados sobre tapetes vermelhos, mas sobre terra batida”, e ainda que siga o que Francisco dizia: ” a única ocasião em que é lícito olhar alguém de cima para baixo é para o ajudar a levantar-se”.

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