Reportagem originalmente publicada no número 3 da revista DOIS, lançado em 2024, quando se comemoravam os 50 anos do 25 de Abril de 1974, e que teve como tema a Liberdade, que hoje republicamos no Sul Informação, no dia em que se assinala o cinquentenário das primeiras eleições livres, em 1975.
Andou pelo país a cantar Abril e a fazer da “Cantiga uma Arma”, ajudou a escrever a Constituição da III República Portuguesa, veio parar ao Algarve, por mero acaso, em 1984, e por cá continua 40 anos depois, a espalhar música, poesia e cultura.
Aos 74 anos, Afonso Dias não se pode queixar de ter tido uma vida aborrecida. No currículo, tem “medalhas” de peso, entre as quais ser um dos membros fundadores do Grupo de Ação Cultural e da União Democrática Popular, bem como um dos deputados à Assembleia Constituinte.
Mas vamos por partes.
Afonso Dias nasceu no último ano da década de 40 do século XX, no Portugal profundo. Passou os primeiros anos de vida «ali na fronteira entre Ribatejo, Alentejo e a Estremadura, perto de Canha e de Lavre». Ainda ingressou no liceu, mas teve de desistir bem cedo, quando o pai deixou de ter capacidade para sustentar os estudos. Desta forma, teve de trabalhar desde muito cedo e era ainda adolescente quando “entrou” na escola da resistência contra o fascismo.
«Nasci naquele Portugal descrito por José Saramago no seu livro “Levantado do Chão”. Essas são as minhas zonas. Mas é também a minha época. Sou do tempo em que muita malta ia descalça para a escola, em que a pobreza era muita, em que os homens eram engajados para trabalhar lá no largo de Canha pelos feitores e uns tinham trabalho e outros não, conforme a simpatia que o feitor nutria por eles», conta, em entrevista à revista Dois.
Também Afonso Dias nasceu numa família pobre, o que fez com que tivesse de ir trabalhar com apenas 13 anos.
Apesar de ter ido viver para Lisboa, com o seu único irmão, alguns anos mais velho, começa a frequentar Vila Franca de Xira. «E porque é que se destaca aqui Vila Franca? Porque ela me aparece num período muito decisivo da minha vida, aquela altura da adolescência», enquadra.
Aos 16, mudou-se para esta cidade, criou uma ligação com a secção cultural da União Desportiva Vilafranquense, que «foi a “universidade” de uma série de gente, alguma dela famosa».
«Ali também era possível privar com muita gente de Vila Franca, que era importante: o Alves Redol, o Soeiro Pereira Gomes, entre outros», reforçou.
Foi mais ou menos nessa altura que começou a interpretar canções de resistência, mas também a compô-las. «Conheci o Zeca Afonso em 1968. Conheci-o a ele, ao Fanhais e a essa malta das cantigas de intervenção ali, em Vila Franca».
Nessa altura, Afonso Dias vivia numa casa conhecida como “O 34” que, a certa altura, começou a ser frequentada «por muita gente. E tornaram-se famosas as sextas-feiras do 34. Vinha ali gente de todo o país».

Foi aqui que começou a atividade política do jovem Afonso, que havia de continuar a crescer e a moldar-se.
Houve mesmo uma altura em que teve de «andar mais escondido» e não foram poucas as vezes em que teve de fugir à polícia, nomeadamente quando ia «cantar aqui e ali».
«Eu conheci o Fausto num concerto na Faculdade de Letras, que nunca terminou. Acabámos a fugir à polícia, pela Alameda abaixo. “É pá, têm de se pirar, pirem-se!” (risos). E isso acontecia muito», conta.
Foi a conciliar a vida artística com o trabalho que Afonso Dias chegou ao 25 de Abril de 1974.
Nesse dia, como sempre, acordou cedo, porque tinha de atravessar o rio Tejo, para ir para Lisboa trabalhar. E foi através da rádio que ficou a saber que tinha havido um golpe.
«Apanhei o autocarro para Cacilhas e o último barco para Lisboa, às 7 e picos da manhã. E a partir daí andei ali o dia todo. Fui ao Terreiro do Paço, ficámos a saber o que se passava e assisti àquilo tudo», recorda.
«A malta mais nova pode achar estranhas várias coisas, em relação ao 25 de Abril, que de facto o são, a esta distância: o que se fez, o que se cantava, o que se escrevia. Mas atenção! Nós estávamos a fazer uma revolução. Não estávamos à espera de que alguém a fizesse por nós. Estávamos dentro dela, a fazê-la!», salienta.
O seu contributo pessoal para a mudança e consolidação da democracia começou pouco depois do dia 25 de Abril, primeiro através da sua voz.
Logo nos primeiros dias de Maio de 74, houve um encontro no Porto, «que juntou muitos cantores», onde houve uma tentativa falhada de criar um grande corpo de artistas para levar música, poesia e cultura a todo o país, que se chamaria Coletivo de Ação Cultural – «eu não fui, e muita outra malta, porque era muito caro e eu não tinha dinheiro (risos)!».

Poucos dias depois, Afonso Dias soube que Fausto, José Mário Branco e Tino Flores iriam atuar em Almada.
«Eu, ao Zé Mário Branco, só o conhecia de ouvir falar e dos discos que gravou. O Tino Flores nem sequer tinha ainda ouvido falar dele. O Fausto é que conhecia bem, já tínhamos tocado várias vezes. E então lá fui com a minha companheira», recorda.
«Acabei por cantar lá umas modas e, nessa mesma noite, em casa do Fausto, criámos o Grupo de Ação Cultural – e não o coletivo, para não açambarcarmos o nome. Nos dias a seguir, estávamos a cantar. Salvo erro, o primeiro sítio onde fomos foi a Grândola. E não mais parámos. Íamos onde era preciso, de Norte a Sul», conta.
Esse foi um período muito intenso na sua vida, uma vez que, no tempo em que ficou no GAC, fez «mais de 900 sessões pelo país. Houve malta que fez mais que isso».
Foi também por esta altura que Afonso Dias ajudou a fundar a União Democrática Popular (UDP), à semelhança de Zé Mário Branco, o que fez com que este partido passasse a ter «algum ascendente sobre o GAC».
Da mesma forma, a ala dos artistas também ganhou um espaço de destaque na UDP.
E aqui começa outra etapa marcante da vida de Afonso Dias: a de deputado à Assembleia Constituinte.
«Foram propostas para a lista da UDP várias pessoas. Em Lisboa, os três primeiros elementos da lista eram o João Pulido Valente, que tinha vindo da prisão e era um herói da resistência, o Américo Duarte, porque era operário da Lisnave, e eu, que era da área dos artistas».
A UDP conseguiu eleger um único deputado, pelo círculo de Lisboa. Pela ordem, seria João Pulido Valente a assumir o lugar, mas este «retirou-se, por razões pessoais».
Subiu a deputado Américo Duarte, que ainda esteve algum tempo no cargo, mas que a UDP decidiu substituir, passado algum tempo. Desta forma, Afonso Dias entrou para a Constituinte, onde ficou até à aprovação da Constituição.
«Foi um processo muito vivo, mas também muito competente. Aqueles 250 tipos – e incluo aqui os 15 do CDS que votaram contra -, em onze meses e picos, conseguiram produzir a Constituição. Com tantas divergências, com tanta diferença e tanta coisa a ter em conta, é obra!», afirma.
Esses dias, admite, foram intensos e havia sempre muita discussão. «Eu, por exemplo, intervinha sempre. Devo ter sido dos gajos que interveio mais ali, porque metia sempre o bedelho em tudo, já que era o único da UDP (risos)».
«Ainda me aprovaram duas coisas. Uma delas foi o voto aos 18 anos. Não fui só eu, claro, mas estou muito ligado a essa proposta», revela.
Aprovada a Constituição, Afonso Dias deixou o Parlamento para trás e voltou a dedicar-se de corpo e alma à música. Já depois do GAC ter acabado, em 1979, lançou o seu primeiro disco a solo e andou a tocar e a cantar, durante anos, dentro e fora de portas.

Em 1984, veio para o Algarve «por nenhuma razão em especial». «Houve uns amigos daqui de Portimão, da Mexilhoeira Grande, que me desafiaram a vir cá passar uns dias e tocar. Resolvi vir e fui ficando. Foram surgindo convites para trabalhar e comecei por ir protelando» o regresso à Margem Sul.
Esse adiar acabou por ser permanente e Afonso Dias criou raízes na região algarvia.
Depois de uma fase a tocar em vários locais, nomeadamente no circuito dos bares, alargou os seus horizontes artísticos e começou a fazer teatro mais “a sério”.
«Há uma altura em que o Luís Vicente [diretor da ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve], que já me conhecia, me desafiou a organizar um recital de comemoração do 25 de Abril, com músicas e poemas, que ele arranjava quem eu precisasse, de atores e tal. Acabámos por fazer um monte de recitais desses, com a ACTA», conta.
A colaboração com Luís Vicente continuou durante anos, fosse como ator em peças de teatro, fosse em projetos paralelos, educacionais.
O primeiro foi «um projeto de música e poesia para as escolas, ao qual chamei “Em Papel Perfumado”».
No virar do século, António Pina, o diretor regional de Educação à data, desafiou-o a fazer um projeto chamado “Ao sabor da poesia”, em 16 Escolas Secundárias do Algarve.
«O projeto correu muito bem e, no final, ele pediu-me para lhe propor mais coisas. E isto nunca mais acabou».
Hoje, Afonso Dias continua a ir às escolas e é «reconhecido por malta mais nova e frequentemente interpelado, na rua, nos cafés», por «gente com os filhos pelas mãos e tudo, que é uma coisa giríssima. Sinto que deixei e continuo a deixar alguma coisa nos jovens, com estas sessões».
«Este ano, fiz 236 sessões de uma hora entre Janeiro e a primeira semana de Junho. Isto para além dos concertos que tenho feito, relacionados com o 25 de Abril, que já são 19 e ainda farei mais uns quantos. E já tenho mais escolas para fazer, a partir de Outubro», elenca.
A tudo isto, Afonso Dias junta cinco filhos, «o mais velho com 53 anos e o mais novo com 14», mas também seis netos.
«Tenho 74 anos e estou vivo, pá! Conheço muita malta mais nova que pensa que está, mas não está», remata, com uma gargalhada.
Obrigado por fazer parte desta missão!
Fotos: Beatriz Bento | Sul Informação