Foi em 2021 que a Cânhamor abriu a primeira fábrica-piloto de “ECOblocos” de cânhamo, na vila de Colos (Odemira), pelas mãos de duas duplas israelo-palestinianas que se fixaram no Baixo Alentejo: os palestinos Khalid Mansour e Azmi Afifi e os israelitas Elad Kaspin e Omer Bem Zvio.
Era um proof-concept que produzia, mensalmente, três a quatro casas, mas que rapidamente mostrou ao mercado para o que vinha: criar uma alternativa aos materiais usados na construção convencional que fosse “verdadeiramente sustentável”, e tornar o setor da construção civil mais “amigo do ambiente”.
Passados quatro anos, a Cânhamor cresceu, e foi em Garvão, no concelho de Ourique, que se expandiu. É nesta região interior – mais conhecida pelo montado e pelo porco alentejano –, que começou a ser construída uma nova unidade fabril com quase 36.500 metros quadrados, que pretende aumentar a produção de blocos em cânhamo (planta da família da Cannabis sativa).
O Sul Informação falou com Elad Kaspin, diretor operacional da empresa – e um dos quatro fundadores –, e Frederico Barreiro, diretor comercial, que nos guiou pelas novas instalações, a dois meses da conclusão das obras, que deverá acontecer em Junho.
Quem passa de carro, a sair de Garvão ou a caminho de Ourique, repara no movimento. Há vários meses que se vê chegarem as máquinas e os chamados “ECOblocos” de cânhamo para a construção da nova unidade fabril da Cânhamor, agora, quase pronta a abrir e a entrar em pleno funcionamento.
Têm uma cor acastanhada e uma textura fibrosa. Podem ser usados em construções feitas de raiz, ou para a reabilitação de isolamentos de pavimentos, de coberturas ou de paredes divisórias. Pesam entre 6 e 14 quilogramas, dependendo da espessura (1/9 do peso de um bloco em betão), e, segundo os seus defensores, repelam pragas e fungos, ajudando a absorver o som, a regular a temperatura ou a proteger de incêndios.
Com um investimento que já ultrapassa os 26 milhões de euros, e que conta com o apoio do Município de Ourique, a Cânhamor tem-se afirmado no mercado como “a primeira fábrica de cânhamo do mundo a fechar o ciclo completo de produção, desde a sementeira à cura do ECObloco”, produzindo blocos de cânhamo “100% naturais e carbono negativos”, lê-se no website.
É também a primeira a produzir para construção, a partir do cânhamo, na Península Ibérica, e será nas novas instalações da freguesia de Garvão que se controlará tanto o tratamento da matéria-prima, como a produção dos blocos, “permitindo produzir o equivalente a 300 casas por mês”.
Só em Portugal, desde 2021, foram construídas 123 casas com blocos da Cânhamor, entre as quais 30 no Alentejo. Duas foram edificadas em Espanha, onde o mercado começou também a dar sinais de crescimento. O objetivo é que todo o cânhamo seja cultivado por parceiros locais.

Uma cultura adormecida
Da família da Cannabis sativa (sim, da família da canábis, mas na sua variante não psicoativa), o cânhamo é uma planta herbácea de crescimento rápido que, dado ao seu baixo teor de THC (principal substância psicoativa), e apesar dos mitos associados à sua reputação, se adapta para fins industriais.
Produzido entre a Primavera e o Verão, e colhido entre Agosto e Setembro, o cânhamo adequa-se a climas mediterrânicos como o português, pelo facto de beneficiar de temperaturas elevadas, sol, e pouca precipitação. Estas características tornam-no uma cultura desejável, especialmente numa região habitualmente conhecida pelos seus Verões duros, quentes e secos, e pelos seus Invernos pouco chuvosos.
Conhecido pela sua aplicação na medicina ou na indústria têxtil, o cânhamo tem um longo passado histórico. Em Portugal, remete para o século XVIII, quando a Coroa Portuguesa incentivou o seu cultivo nas colónias. No entanto, a produção de cânhamo foi sol de pouca dura, e o interesse por culturas mais vantajosas economicamente, como a cana-de-açúcar, fez com que este perdesse interesse e deixasse de ser explorado.
Hoje já não é assim, e o advento do betão de cânhamo deu um novo impulso a esta cultura, ao mostrar ser uma alternativa inovadora à alvenaria convencional, como a cortiça já o era antes.
Em Portugal, a alvenaria convencional é a forma de construção mais utilizada, correspondendo a perto de 80% do parque habitacional. Esta é uma tendência que se mantém quase inalterada desde há́ vários anos, e que é fortemente dependente de materiais como o betão armado, o cimento ou o tijolo cerâmico (usados na construção de pilares ou paredes simples), e a lã de rocha ou a lã de vidro (em termos de isolamento sonoro e térmico).
“O cânhamo era uma cultura que estava completamente adormecida à escala industrial em Portugal, foi apenas quando nos apercebemos que já havia uma tradição que decidimos ressuscitá-la. Em todo o seu processo, desde a semente, é uma planta que dá mais do que aquilo que retira, e era muitas vezes utilizada em rotação de culturas para não saturar os solos”, conta Frederico Barreiro, enquanto conduz a visita até ao armazém principal, onde é feito o armazenamento dos blocos de cânhamo, empilhados em paletes ordenadas.
Na Europa, a introdução do cânhamo na área da construção civil já tem mais de duas décadas, encabeçada por países como o Reino Unido ou a França. São exemplo projetos como as casas de cânhamo de Haverhill, em Suffolk, na Inglaterra, construídas em 2001, ou o centro desportivo Pierre Chevet, perto de Paris, construído em 2021 – o primeiro edifício público erguido à base de cânhamo.

Uma solução mais “amiga do ambiente”
Designados por betão de cânhamo ou hempcrete, em inglês, os ECOblocos da Cânhamor são construídos à base de cal hidráulica natural, argila e aparas (ou “palha”) de cânhamo (um dos subprodutos do cânhamo, a par das fibras e das sementes, usadas, também, na indústria têxtil e alimentícia, respetivamente), e revelam ser um segmento capaz de ajudar na descarbonização de um dos setores mais “agressivos” para o planeta. Isto porque ajudam a colmatar algumas das desvantagens ambientais, logísticas e económicas do setor da construção, dadas as suas propriedades “carbono-negativas”.
Um material “carbono negativo” significa que tem a capacidade de sequestrar dióxido de carbono (CO2) em quantidades maiores àquelas que emite. “Estamos a falar de mais de 10.000 kg de CO2 sequestrados por cada m2”, refere Frederico.
O CO2 é um dos principais gases com efeito de estufa que está na origem do aumento do aquecimento global e das alterações climáticas.
Segundo o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), dados referentes a 2023 apontavam que o setor da construção civil contribuía para 37% das emissões totais de CO2 a nível mundial, e para 34% da energia consumida globalmente.
Além das emissões para a atmosfera, a água e solo, e a produção de resíduos, consome também grandes quantidades de recursos naturais.
Grande parte deste CO2 é captado durante o processo de fotossíntese do cânhamo, tal como acontece com outras plantas durante a sua fase de crescimento, uma vez que é nas raízes – no solo -, que o cânhamo armazena parte do dióxido de carbono que absorve da atmosfera.
Mas esta não é a única mais-valia do cânhamo. Segundo um estudo liderado pela Universidade das Ciências Vivas de Varsóvia, na Polónia, esta matéria-prima ancestral também contribui para a redução da contaminação dos solos, “dada a sua capacidade de absorver metais pesados e de fertilização”, o que tem espoletado um maior interesse por esta cultura, por parte de investigadores, mas também de agricultores.
“Tudo o que se coloque depois de uma cultura de cânhamo tem 10% mais de rendimento”, adianta Frederico Barreiro, sorridente.
Uma investigação encabeçada pelo Departamento de Engenharia Agroalimentar e Biotecnológica, da Universidade Politécnica da Catalunha, em Espanha, analisa como a inclusão do cânhamo na rotação de culturas do trigo “aumentou os rendimentos no primeiro ano em 47%, e em 6% no segundo ano”. No terceiro ano, o estudo aponta que não foram verificados aumentos na produtividade, o que sugere que o efeito positivo do cânhamo nas colheitas subsequentes “dure no máximo 2 anos”.
No entanto, esta pesquisa denota também que, “nas parcelas onde o cânhamo foi cultivado, estas tendiam a ter teores mais baixos de nitrato no solo”, o que confirma que o cânhamo “tem a dupla finalidade de potenciar a sustentabilidade a longo prazo dos sistemas de cultivo de sequeiro”, como o trigo, “no Mediterrâneo e no sul da Europa”.
Apesar de o Baixo Alentejo ser uma região onde, nos últimos anos, a cultura de regadio tem imperado e onde se tem apostado em culturas permanentes de maior rendimento, como o olival intensivo, em 2024, já foram contratados pela Cânhamor 250 hectares para a produção de cânhamo, como adiantou o jornal Público.
“A nossa capacidade de receber é equivalente a 3000 hectares, dependendo do rendimento de cada campo. No nosso modelo de negócio, contemplámos 20 hectares mínimos, e um sistema de rega pivô associado. Como o cânhamo são apenas quatro meses, de abril a setembro, a partir daí o parceiro pode fazer rotação de culturas e voltar a produzir aquilo a que estava habituado”, explica Frederico, que refere ainda que, pela experiência do último ano, “em média [o cânhamo rende] 9 toneladas por hectare,” a 350 euros a tonelada.
Elad Kaspin esclarece, ainda, como por lei “[é preciso] cultivar pelo menos meio hectare de cânhamo”, e adianta que, burocraticamente falando, “não é um processo difícil” a obtenção das licenças necessárias para o seu cultivo, junto da Direção Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV).
Sobre a aceitação dos agricultores a esta nova matéria-prima, que, apesar de ancestral em Portugal, há várias décadas que estava adormecida, Frederico Barreiro refere apenas que, “como cultura nova, ao início houve, claro, alguma estranheza e resistência, por haver um desconhecimento”, mas depois “houve um grande investimento no acompanhamento” dos agricultores. “Trouxemos consultores de França com o know-how e que são considerados os maiores experts na área do cânhamo”, termina.
Apesar do bip bip bip das empilhadoras ser constante, o ambiente no interior da nova fábrica é calmo. Frederico Barreiro cumprimenta com palmadas nas costas alguns dos trabalhadores. É entre as máquinas e as descortinadoras (tecnologia que separa o cânhamo nas suas diferentes componentes), que é feito o carregamento e descarregamento das empilhadoras: umas transportam blocos-teste desfeitos a caminho da reciclagem, outras, palha em sacos para a produção de novos ECOblocos.

Em torno de uma economia circular
“Incentivar quem quer cultivar” é a filosofia por trás do novo projeto a crescer às portas de Ourique. Elad Kaspin explica como isto se traduziu na criação de estratégias de apoio a agricultores, nomeadamente através da publicação online de um Manual Técnico de Cultivo para o cânhamo, a partir do qual a Cânhamor visa dar a conhecer melhor esta cultura e fornecer informações sobre o seu cultivo e rega, desde a sementeira à colheita. “Nós queremos revitalizar esta cultura ancestral em Portugal”, reitera.
De início, todo o cânhamo importado pela Cânhamor chegava a terras lusas vindo da França – líder europeu na produção do cânhamo industrial -, quando o projeto ainda estava na sua fase piloto. Isto acontecia porque, em Portugal, esta cultura ainda não tinha expressão, mas isso está a mudar, e os grandes beneficiados são também os agricultores da região.
O objetivo é incentivar o cultivo de cânhamo em território nacional, de modo a colmatar as necessidades de importar matéria-prima de fora. Para tal, a Cânhamor “tem apostado em envolver-se com os agricultores locais”, nomeadamente no Baixo Alentejo.
“Fixámo-nos no Alentejo primeiro por questões pessoais, porque os donos são locais e sentiram a necessidade de criar esta economia. O outro motivo é mais estratégico: pelo acesso a terrenos maiores para cultivarmos o cânhamo”, explica Frederico Barreiro, acrescentando que estão “preparados para crescer, e que uma das partes fundamentais passa pela parceria com os agricultores”.
As 300 casas projetadas para serem produzidas em breve, assim que as obras da unidade fabril terminarem em junho, “serão totalmente asseguradas pela produção local”.
Elad Kaspin esclarece ainda “que a Cânhamor não tenciona comprar terrenos”, e que o alvo da empresa é criar uma “rede forte de colaboração entre agricultores”, uma economia circular em torno do cânhamo.
As economias circulares são modelos de produção e consumo que emergem da necessidade de encontrar soluções viáveis para a escassez de recursos. Podem ser resumidas numa única palavra: reciclagem; e estão ligadas ao prolongamento do ciclo de vida de um produto, e à redução do impacto da sua carga ambiental.
Na prática, significa que, quando um produto chega ao fim do seu ciclo de vida, os seus materiais são mantidos dentro do ciclo, graças a estratégias de reutilização, porque, na natureza, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, como já dizia Antoine-Laurent de Lavoisier, em 1785.
No caso da Cânhamor, o combate ao desperdício acontece em torno de partes do cânhamo não aproveitáveis para a produção dos ECOblocos, como as fibras, provenientes do caule da planta. “A fibra será entregue a parceiros para ser usada como substituto do plástico, na indústria têxtil e do papel”, denota o técnico.

Otimizar a produção em nome da sustentabilidade
Em termos de Life Cycle Assessment (LCA), uma ferramenta de medição que serve para avaliar e quantificar o impacto ambiental de um determinado produto, durante todo o seu ciclo de vida, Frederico explica que “o resultado dos ECOblocos foi incrível, num setor que é conhecido precisamente pelo contrário”.
Além disso, perante o teste antifogo, obrigatório para a certificação de qualquer material de construção, “chegaram aos 240 minutos (4h) sem mostrarem quaisquer danos”, algo já anteriormente comprovado em estudos feitos a este tipo de material.
Os ensaios de resistência ao fogo são feitos para avaliar por quanto tempo materiais de construção podem resistir e manter o seu bom desempenho perante casos de incêndio, temperaturas elevadas ou fumo. Um material de construção tem a obrigatoriedade de resistir a estes elementos até 90 minutos, sem mostrar danos.
O que torna os blocos em cânhamo tão resistentes é explicado pelo facto de, na sua composição, terem cal, um material que, além de os tornar menos ignescentes, prolonga o seu ciclo de vida.
“É muito difícil de calcular [o ciclo de vida de um ECObloco], mas temos previstos 100 anos. Isto são sempre previsões que fazemos, pois, em teoria, será sempre muito mais, porque há um fenómeno natural que se chama a carbonatação, a relação da própria cal com o carbono presente na atmosfera, e este processo é eterno. É por isso que temos várias construções romanas que ainda estão de pé”, explica Frederico.
Para a Cânhamor, o “momento-chave” foi a certificação técnica dos blocos, bem como a aceitação “incrível” do mercado.
Frederico Barreiro salienta que há agora “uma consciência de mercado que é transversal a toda a sociedade”, onde o futuro significa “criar alternativas amigas do ambiente”, e onde, especialmente no setor da construção, ser apenas ecológico não basta.
“O facto de o rendimento e a performance do produto serem superiores e de retirar operações, tempo e mão de obra, – porque sabemos que há uma carência de mão-de-obra no setor -, é o que torna este produto um atrativo. O objetivo é otimizar a construção”, conclui.
A adaptação é uma inevitabilidade, mas apesar dos avanços modestos, segundo o Relatório de Emissões do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (2024), as emissões de CO₂ no setor da construção aumentaram cinco por cento desde 2015, longe de atingirem a redução de 28% necessária até 2030 para se alinharem com as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris.
Alternativas que cumpram estas metas climáticas globais incluem a readaptação do setor para práticas de construção circular ou para a priorização do uso de materiais de baixo carbono, como o cânhamo, que possam reduzir as emissões, tanto na fase da construção dos edifícios, como durante o seu ciclo de vida útil.
Fotos: Nina van Dijk | Sul Informação







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