Em 1974, o portimonense José Vitorino tinha 19 anos e estudava no Instituto Comercial de Lisboa. Foi uma das testemunhas de uma carga da polícia de choque da PSP, no centro de Lisboa, no dia 21 de Fevereiro, cerca de dois meses antes do 25 de Abril de 1974.
Mas depois, já após a Revolução dos Cravos, em 1977 e em 1978, de volta à sua Portimão natal, assistiu a mais duas cenas de violência protagonizadas pela Polícia, o que o fez concluir que «as bestas são todas moldadas e fabricadas da mesma maneira».
Este é mais um capítulo dos «Retalhos da Vida», escritos por José Vitorino nesses quentes anos 70, à máquina, que o Sul Informação começou a publicar. O primeiro capítulo, sobre a sua vivência do dia 25 de Abril de 1974, em Lisboa, pode ser lido aqui.

21 de Fevereiro de 1974. Tinha tido uma frequência nesse dia e precisava de desanuviar. Nem de propósito, li no Diário de Lisboa que se iria dar, nessa noite, a inauguração de um Centro de Convívio Musical, de que era diretor João de Freitas Branco – artista convidado Zeca Afonso – de borla, junto ao S. Luís, na Rua António Maria Cardoso. Fomos lá, eu, o João, o Avelino e o Guerra.
Quando chegámos, depois de jantar, estava na zona uma carrada de malta. Na porta, alta, antiga, pintada de verde, com poial, estava um papel espetado dizendo que não havia espetáculo.
Estava uma noite típica de Lisboa, calma, fria, com os carris dos elétricos brilhando sob as luzes da livraria do Diário de Notícias.
Encontrei nessa altura o Domingos Manuel da Silva Sequeira, de alcunha o Marrão (eu era o Marranito porque era mais novo), que mais tarde vi, com grande (!) surpresa, na televisão, num programa da campanha pró Octávio Pato para Presidente da República, e estivemos a falar sobre a nossa vida.
Depois, o grupo juntou-se e, uma vez que não havia nada, a malta estava a pensar o que havia de fazer. Na altura em que estava a tentar decifrar quem tinha sido o escultor do Velho do Chiado, o Guerra pediu-me dez tostões para telefonar.
Quando meti a mão na algiobeira do casacão amarelo aos quadrados que era do meu avô, para ver se tinha o dinheiro, vi um polícia a fugir rente ao prédios dos Seguros Mundial. Espantei-me porque não estou habituado a ver um polícia a correr. Geralmente eles andam muito devagarinho, direitos e solenes, de mãos atrás das costas.
Como a zona em que ele estava era um pouco escura, olhei melhor e reparei que ele levava uma espécie de vara na mão. Nisto, senti uma reação no pessoal e vi que, atrás do polícia que me tinha chamado a atenção, vinham outros. – Os choques!, foi o grito geral.
Entretanto, um grupo que estava de costas para a polícia a olhar para baixo, para a rua do S. Luís, foi apanhado de surpresa. Quando caíram sobre eles é que tomámos consciência do que se estava a passar. A polícia tinha cercado as saídas da rua e, fechando a entrada ao pé da livraria, quem estivesse naquele bocadinho de rua ficava lixado.
Ao debandar no meio dos gritos, na cidade subitamente sem automóveis, vejo a polícia a abrir o leque e a vir direito a mim.
Fugi Rua Garrett abaixo, completamente atarantado com o que se estava a passar, parecia que o céu me estava a cair em cima da cabeça. Nunca tinha visto uma coisa assim!
Felizmente, todo o meu grupo estava completo. Junto à Livraria Bertrand, passou em sentido contrário uma moça loira completamente desnorteada, de olhos esbugalhados, a correr em direção à polícia. O Avelino tentou detê-la, mas ela, quase histérica, fugiu-lhe e continuou.
Quando cheguei mais abaixo, atravessei para o outro passeio e o que vi gelou-me o sangue: a tal rapariga estava cercada por dois choques, que lhe batiam com as matracas viradas ao contrário, com o punho de metal. Notei que ela tinha qualquer coisa escura no cimo da cabeça – era sangue.
Sempre me gabei de ser uma pessoa extremamente calma, mas tenho as ideias numa grande confusão sobre essa parte. Lembro-me de ficar primeiro parado, como se apanhasse um choque elétrico. Reagindo, freneticamente procurei uma pedra para atirar (àquela distância não serviria de nada…), queria fazer alguma coisa. Estava branco como a cal da parede.
Acho que, nesse momento, houve qualquer coisa em mim que ruiu. Eu considerava-me uma pessoa incapaz de odiar outra. E, na verdade, gente não é capaz de fazer aquilo que eu vi nesse momento. Nem animais, esses só lutam para sobreviver. Só a besta humana é que procede tão inumanamente. Foi a altura em que vi que algo estava podre em Portugal.
Tudo isto se passou em segundos, quinze, no máximo. Tinha caído um silêncio esquisito sobre a cidade. Nem carros, nem pessoas a passear, nada. Só malta a andar rapidamente, olhando para um lado e para o outro, com medo.
Acabámos por ficar ao pé do Grandella, porque lá tínhamos a possibilidade de controlar três saídas: a Rua Garret, para cima, indo à Calçada do Carmo, se possível, e as extremidades a descer da Rua Nova do Almada.
Enquanto corria o boato que eles estavam a cercar o Rossio, passou um Morris Oxford com três indivíduos apertados no banco de trás. Era o carro do Valdez, o capitão que comandava os choques.
Ao descermos outra vez a rua Garret, depois de irmos ver se ainda havia polícia por lá, passou por nós um Karman-Ghia Volkswagen preto, que abrandou e nos informou que eles estavam no Carmo.
Pensámos ir então para o Rossio, mas ainda bem que não fomos, porque, hoje, à luz do que sei, a Legião usava os Volks pretos para controlar e desorientar os manifestantes, dando-lhes pistas falsas.
Tomámos o elétrico 28 na Rua da Conceição e fomos para casa. Ao passarmos em frente à Pide e ao Chiado, a vida parecia recomeçar, mas notava-se que a cidade estava tensa.
Dormi mal nessa noite. Na manhã seguinte, aproveitei um furo para ir passar pela cena do crime, ver se não tinha sonhado. E não tinha, pois, junto à igreja da rua Garret , nas pedras da calçada, estavam umas pingas de sangue quase negro.
Continuei a andar e, logo à frente, dei de caras com dois guardas da PSP. Levei muito tempo para conseguir passar perto deles sem cerrar os dentes.
No dia seguinte, o João mostrou-me a última página do Diário de Lisboa, que dizia, em título, a duas colunas dentro de um quadrado: «Manifestações na Praça do Chile». No desenvolvimento da notícia, dizia-se a certa altura: «mais tarde, por volta das 21 e 30, no Largo do Chiado, grupos de manifestantes, armados de matracas de ferro, atacaram de surpresa alguns guardas da PSP. Entretanto, foram detidos diversos indivíduos pela PSP».
Quer dizer: o pessoal que não estava a fazer mal nenhum (e não estava mesmo!) é que andou a bater com barras de ferro nos desgraçadinhos dos polícias que iam passando… Quem lesse aquela notícia, pensava: «-Realmente, a Polícia tem razão, aqueles gajos merecem é porrada para cima».
E nos hospitais consta a entrada de uma pessoa do sexo feminino, 1,70 de altura, cabelo loiro, com uma brecha no couro cabeludo, causada por um acidente de viação pelas 21 e 30.
O País está calmo e na ordem. Era Fevereiro de 1974.

Era um dos dias bons do Verão de 1977. Íamos no carro da Lídia para o campo, passando pela Rocha. Ela veio pelo caminho a contar-me que, havia três ou quatro dias, tinha sido multada pela Polícia de Choque (agora batizada com o nome mais democrático de Polícia de Intervenção).
A PI é, na sua maioria, formada por ex-comandos, ex-páras, ex-fuzos, usando o mesmo cassetete comprido, umas botas altas com as calças metidas para dentro e uma boininha. E andam sempre aos pares.
Como íamos aos gelados ao Pai Paulo, ela estacionou junto ao lancil, no lado direito. Por acaso, estranhámos ver uns carros em cima do passeio e, encostados à beira do passeio, nem um. Ao longe, estavam três choques a olhar para nós.
– Parece que eles estão a olhar para a gente. Se calhar, é proibido estacionar aqui – disse a Ly. Mas, como não víamos nada a proibir, saímos e fomos aos gelados.
Íamos a sair quando ela viu um dos choques à volta do carro. Foi ver o que ele queria, enquanto eu ficava de longe a ver, porque os choques dão-me volta ao estômago e põem-me num estado de tensão puro agradável.
Como a conversa estava a demorar muito, resolvi ir meter-me no assunto. O PI era um moço novo, cerca de 26 anos, de bigode, um metro e setenta, bom corpo e ar simpático. Estava a dizer que não podíamos estacionar ali, para pôr o carro em cima do passeio.
– Em cima do passeio? Mas há dias fomos multados por estacionar precisamente em cima do passeio, ali um pouco mais à frente.
Ele olhou para o lado, mexeu-se um bocado como se não estivesse à vontade, mas disse que era assim, as ordens eram estas, já os colegas que tinham estado de serviço antes dele tinham mandado os carros para cima do passeio, de modo que era melhor nós estacionarmos onde estavam os outros. Como o homem até estava a ser correto, a Ly foi pôr o carro em cima do passeio.
– Se nós deixássemos o carro aqui, o senhor multava? – perguntei eu.
Ele respondeu que sim. Então perguntei-lhe em que artigo do Código de Estrada ele se basearia para isso. Aí é que ele ficou à rasca, porque só o devem ter preparado para bater e não para pensar ou estudar o que ia fazer. Não havia placa de estacionamento proibido, estávamos à distância regulamentar da curva e não atrapalhávamos o tráfego. E em cima do passeio é que o Código proíbe.
O choque mastigou, enrolou e, com um sorriso amarelo, disse que às vezes também ele não sabia muito bem como era, porque nuns dias recebia umas ordens, nos outros dias recebia ordem precisamente ao contrário.
Conversando, conversando, chegámos à conclusão que todas as vezes, antes de parar, temos de ir perguntar ao PI de serviço qual é a última moda, onde é que nesse dia se pode estacionar.
Estávamos a falar há cerca de uma meia hora e, às tantas, os dois colegas dele, que já eram mais velhos, vieram andando devagarinho. Ao chegarem junto de nós, perguntou um, com muito maus modos:
– Algum problema?
Por acaso, o moço não levantou problemas e até gostei de falar com ele, coisa que nunca julguei possível. Se aquilo era a moderna Polícia de Choque, se fossem todos como aquele moço, podemos dizer que as suas funções eram um mal necessário, mais ou menos tolerável.

Eram seis e tal da tarde, no Verão de 1978. Estava um calor dos diabos e estávamos nós na esplanada do Zé Sobreira [em Portimão] a tomar o nosso batido de morango e a sandes de fiambre da ordem.
O trânsito na nossa frente estava uma confusão. Era um engarrafamento desde a ponte quase até ao Cinema. Um pouco à nossa direita, mesmo junto à guarita da Guarda Fiscal que está no cais, estava parada uma camioneta do Castelo & Caçorino. Oiço o barulho de escape livre e passa uma motorizada lançada em velocidade, ultrapassando entre a fila de carros estacionados no lado esquerdo da rua e aqueles que estavam engarrafados.
De repente, sai pela frente da camioneta um homem, em passo normal. Quando olhou para ver se podia passar, já a motorizada estava em cima dele. Travagem, queda, pessoas a correr, ruído da queda, o motor a roncar livremente, foram décimos de segundo.
A minha primeira reação foi que o motociclista merecia uns murros por andar ali com aquela velocidade. Que inconsciência! Eu não gosto nada de ver desastres, mas como a Ly queria ir e já tínhamos pago a despesa, lá fomos. Quando chegámos, no meio de um magote de gente, como é uso nestes casos, atropelado e “atropelador” estavam aos murros um com o outro, enquanto uns incitavam e outros tentavam desapartar. Estava estabelecida a tradicional confusão!
O trânsito foi arrancando e chegaram dois Polícias de Choque, aliás Polícia de Intervenção, aliás, PSP – Corpo de Intervenção (a evolução na continuidade da mesma coisa). Estávamos os dois encostados ao muro junto da casinha da Guarda Fiscal quando os vi. O primeiro era alto, com cara de Frankenstein, segurando o cassetete virado ao contrário, com o punho de ferro para a frente (onde é que eu já tinha visto isto?). Atrás, vinha um baixinho e gordinho, de rosto muito rosado.
Começaram a “investigar”. Mandaram o atropelador para um lado, para junto de nós, e o atropelado para o outro lado, junto ao jardim. O mais alto começou a ver os documentos. Viu os da mota e depois atravessou para falar ao outro. Ao passar, esticava o braço, mandava parar o trânsito, espetava a perna e marchava todo inchado, pata aqui, para acolá. Parecia o conquistador da cidade.
Fez-me lembrar que, uma semana antes, ao ir para o trabalho, deparei-me com uma carrinha da PSP-CI estacionada em cima dos mosaicos da rua das Lojas. Não é preciso imaginar muito para ver que o desgraçado que fizesse aquilo a ser multado e a apanhar porrada por cima, se calhasse. Mas eles são os Conquistadores.
Prosseguindo: depois de investigarem um porte de arma que apareceu ali não sei como, o mais alto veio para o nosso lado (com o mesmo esquema – avançar, esticar a perna, etc) e o mais baixo ficou do outro lado. Reparei que, perto dele, estava um velhote de cabelos brancos, um pouco mal vestido, no género de marítimo.
O homenzinho falou, falou e, de repente, vejo o choque a levantar o cassetete e dar, com toda a força, três cacetadas nas costas do velho que, impelido pela porrada, saiu disparado. Imediatamente, o outro polícia foi ter com ele, enquanto as pessoas que estavam a ver ficaram de boca aberta a olhar para aquilo.
Eu não sei o que é que o velhote disse, mas, de qualquer maneira, não é humano aquilo que ele fez. Até a Ly ficou impressionada.
Os choques parece que ficaram carregados de eletricidade. Começaram a embirrar com as pessoas para circularem e eu já não estava a sentir-me descansado ali. O que valeu foi o aparecimento da PSP normal, dois guardas que estavam a tomar conta do acidente.
Eram mais profissionais. Mediram uma vez a largura da estrada, outra vez do lancil ao local do acidente e outra da guarita da Guarda Fiscal até ao outro lancil (?!). Esta última medição é que não percebi. Se estes polícias tivessem chegado mais cedo, aposto que não teria havido problemas. Estes estão habituados a resolver problemas de papéis, ao passo que os outros estão habituados a resolver problemas de porrada.
Depois de o pessoal dispersar e os polícias terem ido embora, fomos dar uma voltinha. Quando íamos para casa, encontrámos os dois choques a conversar com o guarda que está sempre junto ao Banco de Portugal (não sei o que estão eles a guardar, porque o banco foi transferido para Faro). Eu ia a subir para a rua 5 de Outubro para evitar aqueles gajos, porque ainda tinha o nervoso no estômago, mas a Ly quis ouvir o que eles estavam a dizer.
Quando íamos a passar, reparei no mais baixo dos choques, que estava com as mãos atrás das costas segurando o cassetete, e fiquei impressionado com o sorriso de satisfação que ele tinha enquanto o outro dizia:
– …três cacetadas na espinha que se “troceu” todo!
Sem dúvida, referia-se ao lindo trabalho feito um pouco antes. Por isto se pode ver a mentalidade destes fulanos. Aliás, disseram-me que há dias, num petisco da polícia (da Câmara vê-se a esquadra pelas frinchas do soalho), eles estavam a cantar “…com a gente ninguém se meeete…, etc”.
Isto é a psico que lhes metem na cabeça, de que são os bons, os melhores. Afinal vejo que a diferença entre a Polícia de Choque fascista e a Polícia de Choque democrática é só questão de nome, porque as bestas são todas fabricadas e moldadas da mesma maneira.
Nota: Este artigo é publicado no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974
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