A liberdade criativa da cultura e a liberdade democrática da política lidam, diariamente, com a arte dos limites, a arte que dilata e contrai o espaço público e, em primeira instância, o que decorre da expansão da cibercultura e dos seus bens comuns colaborativos.
Como sabemos, a cultura é um reportório de narrativas, costumes, valores, práticas, símbolos e instituições.
Devido à sua universalidade, pluralidade e transversalidade, há mais liberdade criativa na cultura do que na política, como, de resto, agora se comprova, com as restrições à liberdade da democracia liberal.
Com efeito, o facto de existir uma mundivisão dentro da cultura – antropológica, artística, religiosa, sociocultural – permite-lhe alimentar vários imaginários coletivos, narrativas, reportórios e projetos de vida.
Ou seja, a cultura não é, apenas, uma coleção de objetos artísticos ou patrimoniais (visão restritiva), ela é uma visão do mundo e um projeto de vida, (uma narrativa) e, também, um programa político (uma estratégia de ação).
Não se pode mudar o mundo (a política) sem mudar o modo de o reconfigurar e representar (a cultura). A literatura e as artes e a cultura em geral oferecem várias visões do mundo, modificam as nossas perceções da realidade e o sentido que lhe damos e, através delas, somos convidados a participar nos vários horizontes do possível.
Dito isto, o caldo de cultura é, portanto, essencial aos projetos políticos e tanto pode ser uma austera sopa da pedra onde desembocam todos os conflitos mal resolvidos que a sociedade foi incapaz de assimilar, como uma bela sopa de legumes enquanto atividade intrinsecamente política que é capaz de reconciliar diferenças, equívocos e conflitos, e estabelecer os compromissos entre o ser humano e o mundo e os horizontes possíveis do futuro.
O mundo da cultura é o mundo e a cultura é o lugar onde se respira o espírito do tempo. Por isso, no mundo global, a sociedade é um mosaico intercultural que a política deve respeitar e promover em seu próprio benefício e da comunidade.
Por outro lado, no plano da liberdade política democrática, as narrativas neoliberais dominantes são autorreferenciais, não criam solidariedade, simpatia e reciprocidade, ou seja, existe comunicação e conexão, mas não existe o sentido de comunidade e muito menos de uma comunidade coesa.
Sem esta narrativa comunitária, o discurso e a ação não convergem e perde-se o sentido político necessário à ação comum.
Acresce que as representações autorreferenciais nas redes sociais minam a esfera pública cultural e política e tornam tudo comercializável ao serviço do narcisismo de cada um.
Assim, a dificuldade inerente à complexidade do mundo em que vivemos empurra o cidadão comum para os braços dos influencers e bloggers que administram as bolhas das redes sociais e aí opera-se a conversão da complexidade em ideias simples, dogmáticas, acessíveis e baratas.
Sem um horizonte aberto e crítico e, mesmo, utópico, a cultura perde a sua razão de ser e converte-se em propaganda.
Vivemos numa sociedade complexa e contingente que exige um pensamento muito mais crítico e transdisciplinar.
Neste sentido, precisamos de evitar, a todo o custo, que haja uma clivagem entre cultura e política, entre a alegria da cultura e o compromisso da política e que, por falta de propósito e ambição, haja, digamos, uma interrupção na linha do tempo.
A cultura, sempre mais generosa, pode ajudar a política, sempre mais calculista, a adquirir essa visão de futuro e, assim, a renovar a esperança política e a política da esperança.
Entretanto, à medida que nos aproximamos do ciberespaço e da cibercultura caminhamos em direção a novos códigos de comunicação e linguagem e a uma verdadeira reprogramação das mentes.
A chegada da cultura tecno-digital desencadeia uma desconexão entre as velhas instituições e as novas culturas emergentes que precisa de ser resolvida.
Dito de outro modo, é preciso repolitizar as funções primordiais da cultura, em vez de a relegar para um plano secundário e decorativo. Se quiser ser uma ferramenta interpretativa, a cultura tem de percorrer o horizonte dos possíveis, da lógica mais convencional às transgressões do sistema, das promessas de igualdade, justiça e liberdade até ao horizonte utópico e experimental.
Afinal, a cultura é de todos e interessa a todos e é por isso que a política se interessa pela cultura. Não se pode mudar o mundo (a política) sem mudar o modo de a representar (a cultura).
Por isso, é essencial que deixemos de ser apenas espetadores passivos para ser, também, atores proativos nos espaços públicos e comuns da sociedade da informação e do conhecimento.
Se assim for, a cultura, nos seus vários patamares, será arrancada ao mundo corporativo da cultura, aos seus profissionais, gestores e instituições, para ser posicionada no espaço público comum como objeto político de primeira linha a ser debatido por todos e, dessa forma, a moldar novos mundos comuns e solidários.