A última vez que o vi foi numa manhã tórrida de Agosto ou Setembro do ano passado. Eu e o meu irmão caminhávamos pelo passadiço que desemboca na praia da Torralta, já refeitos de um estacionamento atribulado no parque de terra batida.
A hora era tardia, regressavam do areal os pais com as crianças pequenas, os fugitivos aos escaldões, os esfaimados apurando o apetite para o almoço.
Cruzámo-nos com ele e com a mulher, a professora Elsa, enquanto tornavam para o carro. Vinham sorridentes, a carregar um saco de pano e um guarda-sol.
Àquela luz capaz de derreter dunas, o perfil do professor Luís Eduardo Gonçalves pareceu-me o de um senador romano, seco e tisnado. Faltava apenas que a toalha lhe descesse do ombro aos tornozelos.
Falámos brevemente. Perguntaram-nos como estava a vida depois de termos saído da Secundária onde ambos ensinavam, o que é que andávamos a fazer fora de Portimão.
Confessou-nos que se tinha reformado havia pouco tempo, já não me lembro se havia um rasto de tristeza, alegria ou resignação naquelas palavras. Talvez a combinação alquímica dos três humores.
A professora Elsa ainda tinha alguns anos pela frente junto ao quadro negro, a ensinar a mais um par de gerações sentadas.
Ele tinha tido um susto de saúde há algum tempo, mas tinha recuperado. A fortuna tinha sido boa companheira, dera-lhe razões para mais uma vez continuar a sujar os pés na poeira do caminho.
Qual deles seguiria? O que faria, agora, que o tempo se tornava mais elástico do que na infância? Uma certa distância que há nas relações entre professores e antigos alunos impediu-me de o aborrecer com as minhas perguntas. E cordiais nos despedimos, prontos para nos vermos em mais alguma rua ou gaveto da cidade, ou acenarmos atrás dos vidros, parados num semáforo.
Soube, na tarde de dia 24, que o professor Luís Gonçalves tinha falecido. E a funesta notícia fez rombo com a força de um projéctil de morteiro.
Somos sempre, independentemente da experiência que tivermos quanto aos azares e tragédias do mundo, inocentes perante a morte. Ignorantes a confrontar-nos, novamente, com a tinta fresca dos enigmas e dos paradoxos. E tão bem os conhecia ele, por dever de ofício.
Era professor de Filosofia havia décadas na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, em Portimão, entalada entre um velho hospital e um descampado pedregoso.
A uns passos, alvejava o muro do cemitério municipal. Em algumas aulas, estendia o braço direito até à antena do dedo, apontava para a janela e dizia: “Eu (diria nós ou queria-nos poupar, ainda, à angústia?) sei bem que um dia destes vou ali parar, ao jardim das tabuletas!”
Não era homem de eufemismos, mas deste abusava. Era, naturalmente, um orador com gesto vivo e paixão no timbre, a que um sotaque angolano dava maior força. As suas flutuações no tom eram conhecidas e imitadas. Gesticulava, gracejava, era rápido na ironia, íntegro no julgamento e na palavra.
Por vezes, conseguia ser duro, com expressões contidas, acostumado aos rodeios e desatenções de adolescentes torturados. “Olhem que se eu vos apanho nesta, vão de carrinho!”.
Pela sua boca, pelas variações do seu discurso empolgado, correndo como animais eléctricos, entre o bolso da camisa aos quadrados e o tecido dos polos, iam as teorias e os filósofos. Descartes esgrimia com Hume os seus floretes racionais, Kuhn e Popper dançavam enquanto o átomo se cindia, Einstein cofiava o bigode ainda despenteado e Sócrates estava ainda a bebericar a taça de ponche sem que sonhasse com as promessas da cicuta.
Nunca nos chegou a dizer, no final no 11.º ano, como tinha prometido quando as nossas aulas tiveram início, qual era a sua posição moral, se cria num Deus responsável por tecer e baralhar os fios que comandam todas as marionetas.
Nunca quis poluir os nossos juízos, inclinar-nos para esta ou aquela posição. Como sempre fez questão de demonstrar, a sua função era a de explicar, apresentar-nos os problemas e as teses em conflito, preparar-nos para as exigências da crítica.
Dava-nos tempo e método para pensar no sentido das coisas, na harmonia possível num mundo de cruéis absurdos, na importância da literatura e da reflexão sobre a realidade, no direito à morte e à dignidade na vida.
Não me esquecerei que, se tivéssemos aula no dia 11 de Novembro, fazia questão de dizer que aquele era o dia da libertação do seu país, aquela Angola longínqua sobre a qual se adivinhava que tinha um amor profundo. Nem do rigor analítico dos olhos, do giz riscando na ardósia as letras e as fórmulas da lógica, das exclamações e das reprimendas, do seu sorriso inquieto.
Este é um pobre testemunho sobre um homem que se transformava entre as mesas e o quadro.
Cidadão discreto e consciencioso, naquele exíguo palco que lhe dava o perímetro das salas do primeiro andar de um dos pavilhões da escola secundária, o professor Luís acendia-se para dar qualquer coisa a turmas de rapazes e raparigas em tumulto.
A sua cabeça estava e não estava ali, ligada àqueles que antes dele partilharam os seus anseios e conselhos com outros discípulos, à seiva que percorria os pinheiros que rodeavam o recinto da escola, à dura certeza do poder dos elementos, do sol e da terra.
Num tempo em que a escola pública é permanentemente desvalorizada por sucessivos governos da república, que o papel dos professores é constantemente menorizado, vale a pena olhar para o exemplo daquele homem discreto, para a minúcia do seu labor e a verticalidade da sua ética pessoal e profissional.
E é como seu antigo pupilo, filho e irmão de dois alunos seus, que arranho, na hora da despedida, esta tão canhestra missa de requiem para o grande Luís Gonçalves, com quem tenho pena de não ter bebido o café que ficou por combinar.
Obrigado por fazer parte desta missão!