Uma rachadela num prato de cerâmica, o aparecimento de fungos nas páginas de um velho manuscrito, ou a oxidação, devido à humidade, do cobre de uma taça antiga: muitos são os fatores que levam à degradação da vida útil do nosso legado cultural e patrimonial. Nada está a salvo da passagem do tempo, pelo que a oportunidade de salvaguardar todas estas peças, e fazê-las perdurar na história, é um privilégio que muito poucos têm.
É precisamente esse um dos papeis principais de um técnico de conservação e restauro, e, para descobrir mais sobre esta profissão, o Sul Informação visitou o Museu Municipal de Loulé, onde teve a oportunidade de olhar de perto os trabalhos que garantem a preservação do património que integra o seu espólio, no âmbito da semana em que se comemora o Dia Internacional do Conservador-Restaurador (a 27 de janeiro).
Os “bastidores”, como a técnica superior de conservação e restauro Ana Rita Vaz lhes gosta de chamar, são uma parte vital de qualquer museu, mas o cuidado e as competências especializadas envolvidas são raramente notadas por quem o visita. No Museu Municipal de Loulé, não é diferente, como Ana Rita Vaz e Telma Sousa fazem notar durante a nossa visita à sua “semana aberta”, que decorreu entre os dias 28 e 31 de janeiro.
De bata branca e bisturi em punho, noutras circunstâncias poderiam passar por médicas-cirurgiãs, se trabalhassem num hospital, mas estamos no Museu Municipal de Loulé, localizado no centro da cidade, e por aqui não há macas nem mesas de cirurgia, mas sim gessos, folhas de polimento, espátulas, ceras e pinças.
Debruçada sobre um cântaro em barro quebrado, a técnica Telma Sousa concentra-se em tapar, com gesso e cera aquecida, a rachadura visível no objeto, enquanto Ana Rita Vaz tenta salvar a capa degradada de uma edição, já com 83 anos, do livro “Guerra e Paz”, de Leão Tolstoi. Em cima da mesa, encontram-se outros objetos a restaurar, como um candil de cerâmica vidrada da época islâmica, que teria servido para iluminar a partir de um pavio embebido em óleo.

“As pessoas não têm noção do trabalho que existe antes de uma peça entrar numa vitrine”, explica Ana Rita Vaz, acrescentando que “ainda existem outras fases, desde catalogar a fazer inventário”, processos igualmente dispendiosos que costumam ser feitos com o apoio de arqueólogos, que ajudam a datar as peças.
“O trabalho de um conservador nunca é igual. No início do ano, estivemos a reorganizar a reserva e a acondicionar o espólio. À segunda-feira, que é o dia em que os espaços museológicos estão todos encerrados, fazemos trabalhos de manutenção, desde limpeza a controlo de humidade e temperatura. O trabalho que a Telma fez na semana passada foi, por exemplo, desinfestar peças contaminadas pelo bicho da madeira”, explicou a técnica ao nosso jornal.
O Museu Municipal está dividido entre sete polos diferentes: na cidade de Loulé, situam-se o Núcleo Sede, os Polos Museológicos da Cozinha Tradicional e o dos Frutos Secos, os Banhos Islâmicos e Casa Senhorial dos Barreto. Há ainda os Pólos Museológicos de Salir, da Água (em Querença) e de Cândido Guerreiro e Condes de Alte. Contudo, grande parte do trabalho é feito a portas fechadas, num laboratório provisório anexo à sede em Loulé, não visitável.
Mais do que uma arte, apercebemo-nos que este labor é uma ciência que exige conhecimentos em áreas do saber que vão desde a química à história de arte, ao que Telma acrescenta que é um trabalho “muito científico”.
“O curso de restaurador também tem muitas especialidades. Nós não sabemos tudo”, revela ainda Ana Rita Vaz, que se especializou em papel e documentação gráfica museológica, depois de terminada a licenciatura em Conservação e Restauro, pela Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa, curso que entrou em funcionamento em 2006.
No Museu, as cerâmicas arqueológicas, o papel e a encadernação fazem parte das especialidades dos técnicos que aqui trabalham, contudo, são também precisos conhecimentos mais vastos relativamente às reações ao tempo de outros materiais, e à temperatura e humidade das reservas, como o metal ou os têxteis, que têm maior facilidade em se degradarem.

No restauro, fala-se sobretudo em “conservação preventiva”, que visa impedir perdas em acervos com base na identificação e quantificação de agentes de degradação: “Cada peça é diferente, o papel, os metais e o vidro arqueológico são muito sensíveis, o que os torna uma prioridade para nós, o que é diferente da cerâmica ou de peças em pedra. O restauro é feito em último caso, só quando uma peça está em perigo ou em muito mau estado de conservação”, explicam.
Uma das prioridades agora é “focar no espólio museológico de Salir”, no interior do concelho de Loulé, “que precisa de ser intervencionado com urgência” e que inclui sepulturas da Idade do Bronze e ruínas dos tempos romanos, muçulmanos e dos séculos XII e XIII.
“Estamos também muito atentas ao património das igrejas”, acrescentam, o que se comprovou em 2022, por exemplo, aquando do restauro da Igreja Matriz, que estava em perigo de ruir, trabalho, este, que foi acompanhado por Ana Rita Vaz e a restante equipa de Conservação e Restauro.
O truque é que “fique bem preservado e conservado”, não necessariamente “bonito”, respeitando os princípios da intervenção mínima, explicam, acrescentando que “atualmente a área da restauração e conservação foi evoluindo: já se dá importância à antiguidade da própria peça. O que é agora valorizado é conseguir perceber que a peça foi restaurada e que o restauro é diferenciado do original”.
“É importante referir que o trabalho de restauro não é propriamente bricolage. Cada peça é individual e é preciso todo um conhecimento por trás”
Ana Rita Vaz, técnica superior de Conservação e Restauro
Em breve, o Museu Municipal de Loulé ganhará melhores instalações no âmbito da segunda fase do projeto municipal “Quarteirão Cultural”, cuja primeira fase já começou em 2022, com a abertura dos Banhos Islâmicos. “Há um projeto de fazer um laboratório mais para a frente, com outras condições e com material mais recente. Isto entrará em obras, e em breve teremos umas instalações melhores. Para já temos de nos adaptar àquelas que existem”, explica Telma Santos.
Dália Paulo, diretora municipal da Câmara louletana, revelou ao Sul Informação que o projeto do Quarteirão Cultural, “que é a renovação do Museu Municipal de Loulé”, inclui a “criação do Laboratório de Conservação e Restauro de Paleontologia e de Arqueologia”, cuja empreitada foi lançada ontem na plataforma de contratação pública.
Em 2024, o Museu Municipal de Loulé recebeu 191 916 visitantes (mais 12% que no ano anterior). Das 303 atividades calendarizadas, que contabilizaram no total 7.037 participantes, 165 tiveram como foco o público escolar, abrangendo 4.147 estudantes.
A semana aberta do Museu Municipal de Loulé foi uma iniciativa promovida no âmbito do Dia Internacional do Conservador-Restaurador, destinada a “oferecer a todos a oportunidade de conhecer os profissionais que dedicam as suas vidas a cuidar do nosso passado”, permitindo aos visitantes “interagir com os técnicos e observar como objetos antigos são cuidadosamente restaurados”.
Nota: Atualizada às 9h20 deste sábado, 1 de Fevereiro, com a informação de que a empreitada do projeto “Quarteirão Cultural” já está na plataforma de contratação pública.
Fotos: Nina van Dijk | Sul Informação