Até mesmo a pessoa mais desatenta provavelmente já se terá dado conta de que está ao rubro a discussão em torno da comummente designada alteração à “lei dos solos” (ainda que na verdade a mudança ocorra no regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial), uma pedrada tão intensa no charco regulamentar, que não parece haver memória de muitas que se lhe comparem, apesar da incontinência legislativa de que sofre Portugal.
Está principalmente em causa a prerrogativa, agora atribuída aos Municípios, de poderem autorizar edificação por deliberação da assembleia municipal, mesmo que em solos rústicos (que são automaticamente reclassificados como urbanos) e à revelia de qualquer instrumento de gestão territorial.
Para que a coisa não pareça totalmente arbitrária, foram estipulados alguns critérios de “coerência da urbanização”, cuja fundamentação técnica pode seguir muitos caminhos, podendo, inclusivamente, ser encomendada e contratada fora da esfera dos serviços municipais…
A alicerçar esta manobra legislativa, uma intenção bondosa e premente: ajudar a resolver as dificuldades generalizadas que os portugueses enfrentam na obtenção de habitação, embora a ideia de uma finalidade “habitacional ou conexa” possa dar azo a liberdades criativas.
No entanto, para esse efeito, o Governo, dando continuidade a uma tendência proveniente já do seu antecessor, optou por apadrinhar uma narrativa pronta-a-pensar que, por um lado, afirma a escassez de imóveis e, por outro, aponta a causa de tal míngua à falta de solos disponíveis para edificação. Como corolário, tal narrativa aponta para um axioma: edificação nova é vendida ao preço da uva-mijona, por oposição à carestia da construção existente.
O Presidente da República (um pouco ao jeito da anedota, em que, tal como uma cebola, mesmo chorando não se deixa de comer) promulgou a alteração, apelidando-a de “entorse” do ordenamento e gestão territorial.
De resto, desde o seu preâmbulo – parte mais romântica de qualquer documento legislativo – que o diploma de alteração revela uma abordagem à questão da habitação mais pelo prisma do construtor civil, do que propriamente pelo das pessoas, aparentemente mais preocupado com o ritmo do negócio da construção, do que com o seu impacto prático na vida dos cidadãos.
Num tempo em que muito se discutem as percepções, é difícil não nos rendermos à ideia de que a verdadeira dificuldade dos portugueses em aceder a habitação se prende com o facto de terem que enfrentar um mercado especulativo e de preços inflacionados, indo à liça com rendimentos miseráveis, ademais num contexto de custo de vida esmagador.
Seja como for, esta alteração legislativa tem gerado um frenético esgrimir de argumentos entre profissionais dos diferentes sectores que se debruçam sobre as temáticas do ordenamento do território e do urbanismo, desde arquitectos paisagistas a advogados, passando por arquitectos e engenheiros.
As questões técnicas, jurídicas e também económicas (estas reclassificações são acompanhadas de obrigações, em termos de modelo de negócio, peculiares, a par de serem os particulares quem passa a carregar o ónus da execução de políticas públicas…) mais específicas, são muitas e apaixonantes, bem como os vaticínios em torno da maior ou menor eficácia da medida.
Ainda assim, é bem provável que muita gente não tenha tempo (ou interesse) para poder analisar este debate com a profundidade que implica, e muito menos para nele se envolver.
No entanto, há coisas que vale a pena pensar.
Desde logo, muito se tem falado de se estar a abrir uma Caixa de Pandora, no que à corrupção diz respeito. Alguns rasgam as vestes perante tal ofensa, mas a verdade é que o triângulo amoroso entre municípios, banca e empreiteiros tem um mau histórico.
De qualquer forma, a corrupção é um caso sério – literalmente, de polícia – e que não deve ser vulgarizado, sob pena de esvaziar a sua gravidade. Por isso mesmo, mais preocupante do que a corrupção, será provavelmente um outro fenómeno, bem mais comum e evidente: a promiscuidade.
Sendo, por definição, órgãos de proximidade, as autarquias estão expostas a um leque mais vasto de pressões, imediatas e personalizadas, seja por empresas ou particulares, que muitas vezes levam a decisões que, embora bem-intencionadas, passeiam no limite da legalidade, e muito para lá da prudência técnica. E, no final das contas, os ganhos são privados, mas os encargos (infra-estruturas, por exemplo) são sociais…
Ora, o que está em causa são interesses nacionais, nomeadamente a preservação de recursos naturais e um correcto ordenamento do território, tarefas fundamentais do Estado, constitucionalmente consagradas. Pulverizá-los, sujeitos à óptica fragmentada de centenas de municípios, e, dentro deles, a intenções casuísticas, sem qualquer articulação ou coordenação, encerra sérios riscos.
Sendo certo que os últimos anos nos têm trazido uma tendência neo-feudalista de municipalização do país, há valores de conjunto que, sendo obrigatoriamente sensíveis às expressões e realidades locais, não podem ser vistos na lógica da manta de retalhos.
Neste ponto, importa dizer que a alteração ao diploma salvaguarda algumas áreas biofísica e ecologicamente importantes do eventual pato-bravismo de bênção autárquica. Nomeadamente áreas com regime de protecção integradas no Sistema Nacional de Áreas Protegidas, na Reserva Agrícola Nacional, e boa parte das áreas incluídas em Reserva Ecológica Nacional, embora deixe à mercê dos apetites de betoneira zonas tão importantes como as áreas estratégicas de infiltração e de protecção e recarga de aquíferos, áreas de elevado risco de erosão hídrica do solo e áreas de instabilidade de vertentes.
Mas fica fragilizada a visão integrada da paisagem e das actividades que nela ocorrem, e a ideia de um sistema de ordenamento do território coerente, processo em que, mais do que dizer onde não se pode construir, se fundamenta tecnicamente o que se pode fazer onde, procurando casar aptidão territorial com intenção humana.
No fundo, tentar temperar a ideia de que querer é poder, com o sal da ponderação entre limites biofísicos, interesses privados e interesse público – este dificílimo de definir, ninguém o pode negar.
E aqui reside o principal aspecto, não apenas desta alteração legislativa, mas de algo mais vasto, que se começa a desenhar, através de outras decisões, como por exemplo o recente anúncio da Ministra do Ambiente relativamente aos núcleos ilegais das ilhas-barreira, que poderão ser alvo de uma tentativa de enquadramento à revelia do respectivo Plano de Ordenamento da Orla Costeira, do Domínio Público Marítimo e até de sentenças já transitadas em tribunal: a erosão de uma visão social onde o interesse de cada um deve ser ponderado num quadro global, prevalecendo a razão dos discos pedidos, e a favor de quem grita mais, e mais alto.
Se quisermos abordar a questão com honestidade, é óbvio que o processo de ordenamento do território em Portugal enferma de vários males. À cabeça destes, o ser muitas vezes demasiado conceptual, sem conseguir uma aproximação expedita e efectiva aos desafios locais das comunidades, transformando-se progressivamente num voraz pesadelo burocrático, de tal forma distante, ensimesmado e moroso que, quando finalmente concluído – sob a forma de um plano, por exemplo – a realidade que pretende ordenar já há muito se transformou dramaticamente, para o bem e para o mal, sem que haja capacidade de adaptação a essa mutação constante, a que no fundo se chama… vida.
Não obstante, deitar fora o bebé com a água do banho nunca foi ideia saudável.
Perante estas fragilidades e problemas, confrontam-se então diferentes visões da forma como colectivamente nos organizamos e gerimos a nossa vida em sociedade, e de qual o papel que o ordenamento do território – instrumento, acima de tudo, de coesão e competitividade territorial – desempenha.
A presente alteração legislativa até poderá ter, em termos práticos e gerais, um impacto semelhante ao de tentar colocar um prego na parede com recurso a uma chave de parafusos: sendo a ferramenta errada para a resolução do problema, concretamente o da habitação, não se insistirá muito no seu uso.
Mas, ainda que assim seja, pode causar estragos. Principalmente, sublinha-se, no conceito colectivo de ponderação global de interesses que interagem e convivem nas nossas paisagens, e de que vale a pena existir um exercício de mediação.
Já agora, umas contas simples acerca da escassez de casas, só para acabar com um exemplo próximo.
Os Censos 2021 indicaram que no Algarve residem 451006 almas, que se distribuem por 391416 alojamentos familiares clássicos, organizando-se em 194192 agregados familiares, cuja dimensão média é de 2,3 pessoas – sim, um terço de pessoa: quem nunca?
Ao mesmo tempo, cerca de 11,9% (46752) dos tais alojamentos familiares clássicos estão vagos. Considerando a dimensão média dos agregados familiares algarvios, estamos então a falar de casas para mais ou menos 107530 pessoas, algo como 23,8% da população residente na região. População essa que, entre 2011 e 2021, cresceu 3,6%, acrescentando 16337 algarvios (de nascimento ou adopção) às hostes mais a Sul de Portugal Continental. Isto quer dizer que as habitações vagas davam para acomodar, mais coisa menos coisa, 60 anos de crescimento populacional do Algarve, à taxa verificada no período entre os dois exercícios censitários mais recentes.
Estamos claramente a falar de umas contas simples, e simplificadas, pois teríamos que escrutinar a distribuição geográfica dessas habitações (casas vagas em Alcoutim dificilmente resolvem os problemas de um casal de jovens em Silves), a sua tipologia, estado de conservação, entre outros factores. Estes números, que à escala nacional se repetem e ampliam, não podem ser entendidos como argumentos definitivos, mas antes matéria para reflexão.
Concretamente, se precisamos de facilitismo e imediatismo, mais ou menos consequente, ou visão estratégica, reformando o que tem que ser reformado, mas de forma assertiva e estruturada? Mais, precisamos de programar o sector da habitação, ou antes de o arbitrar?
E, para esse efeito, precisamos de nos predispor a sacrificar uma lógica de conjunto, ou precisamos de investimento público, associado a política de intervenção num sector económico altamente dinâmico e competitivo, por exemplo recorrendo ao Plano de Recuperação e Resiliência, em vez de o torrar a colmatar lacunas de gestão corrente das instituições do Estado ou em extravagâncias territoriais? E onde o devemos fazer, para que fim, para que desenho territorial e paisagístico?
Acima de tudo, precisamos, mais uma vez, de nos precipitarmos em nome da urgência que nos assalta por falta de pensamento atempado, ou, para variar, vamos pensar bem no que fazemos, para evitar urgências futuras?
A discussão segue dentro de momentos.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)