No Baixo Alentejo, o território e o barro dão cor ao trabalho de Maja e Maya

Entrevista a duas artistas com vidas cheias de coincidências, na aldeia de São Luís

Maya Fernandes Kempe – Foto Nina van Dijk | Sul Informação

 

É fim de tarde no centro da aldeia de São Luís (concelho de Odemira), onde está localizado o Ateneu do Catorze, espaço cultural e artístico fundado em 2017. Em tempos uma loja e habitação familiar, transformada em residência artística para acolher artistas emergentes da região, a visita ao ateneu é apenas um pretexto para uma longa conversa com Maja Escher e Maya Fernandes Kempe, duas artistas luso-alemãs do concelho que têm desenvolvido grande parte dos seus projetos em torno dos materiais térreos que, do Alentejo Litoral, germinam: sementes, fábulas, ditados populares, histórias, canções locais e, especialmente, o barro.

Da rua, avista-se a montra e a porta da antiga loja. É o Nº 14. A porta que dá acesso ao pátio interior está aberta e, por detrás dela, podemos encontrar o atelier de Maya Fernandes Kempe, pano de fundo para a entrevista conduzida a Maya e Maja, que fazem do barro matéria-prima para algumas das suas criações artísticas.

Por esta altura, já se trocava nomes e risadas, fruto das coincidências bonitas que as duas artistas partilhavam.

Maya Fernandes Kempe nasceu em Berlim em 1975. Ceramista e arte-pedagoga, é uma das fundadoras do espaço do Ateneu do Catorze, em São Luís, tendo desenvolvido vários projetos locais no concelho de Odemira, onde atualmente vive, e exposições em Lisboa e Berlim.

“Sementes”, exposição de escultura cerâmica que representa sementes de plantas autóctones da região do Baixo Alentejo e Alentejo litoral, é a sua mais recente série de trabalhos, e fez parte de uma das exposições temporárias, entre março e maio de 2024, do Museu Nacional de História Natural e Ciência, em Lisboa.

Quanto a Maja Escher, nascida em Santiago do Cacém em 1990, e criada perto da barragem de Santa Clara-a-Velha, no concelho de Odemira, a artista plástica luso-alemã não se considera somente ceramista, apesar de trabalhar com cerâmica e barro cru nas suas instalações e projetos.

Exposições como “Um dia choveu terra” e “Só pedimos que nos semeiem na terra” fazem parte do seu currículo artístico.

Com um pé em Lisboa e outro no Baixo Alentejo, foi recentemente artista residente na Cultivamos Cultura, em São Luís – estrutura organizativa com foco nas áreas da produção, pesquisa, educação e exposição científicas e artísticas – onde esteve a desenvolver o projeto “Guardiões do Rio”, com outros três artistas do concelho de Odemira. Mais recentemente, foi nomeada finalista da 15º edição do prémio “Novos Artistas Fundação EDP”.

 

Maja Escher – Foto Nina van Dijk | Sul Informação

 

A conversa começa alegre. “Cerâmica diz-se quando o barro passa pelos processos cerâmicos, pela cozedura”, explica Maya Fernandes Kempe, que trabalha há várias décadas com barro nas suas esculturas-cerâmicas.

Maja Escher acrescenta, ainda, “que o barro não é uma área artística, mas um medium, e é usado tanto na escultura como na instalação ou na pintura”.

“Era sempre eu que facilitava as sessões de expressão artística dos outros”, começa Maya. “Já tinha algum gosto pelo material barro, então, aos poucos, em todas as minhas sessões, fui utilizando-o cada vez mais. Sejam crianças, sejam pessoas idosas, sejam pessoas com demência ou deficiência mental, todos eles adoravam o barro como eu, e isso às vezes é contagiante”.

Para a artista berlinense, foi só quando abriu o seu primeiro atelier em Berlim que começou “mais seriamente a trabalhar” enquanto ceramista e a produzir as suas primeiras peças.

Maja Escher, por outro lado, apaixonou-se pela magia cor de terra que é o material barro, durante a sua licenciatura em audiovisuais, pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa.

“Logo no segundo ano escolhi uma optativa que era cerâmica, e foi no contexto dessa cadeira que eu tive o meu primeiro contacto com a cerâmica, que foi ir às Oficinas do Convento, em Montemor”. As Oficinas do Convento fazem parte da Associação Cultural de Arte e Comunicação, fundada em 1996 no Convento de São Francisco, em Montemor-o-Novo, e são, tal como o Ateneu do Catorze, um espaço de promoção e residência artística ligadas às Artes.

Seria só em 2015 que, numa segunda visita a Montemor, aquando da inauguração dos Lavadouros – espaço integrado às Oficinas do Convento e orientado para a investigação de cerâmica -, Maja se reencontraria com o material barro.

“Eu percebi que era uma matéria na qual era muito fácil eu me exprimir e na qual, de repente, as minhas ideias saiam de uma forma muito mais fluída”, explica a artista.

Para Maja Escher, desde cedo houve um “reconhecimento” com a matéria; o barro, que desde então está presente na maioria das peças que cria, cor-de-terra, argilosas, da mesma cor que as paredes da sua casa construída em taipa. “Eu cresci e vivi no monte, que é em taipa e que nós reconstruímos… fazer adobes, brincar e trabalhar com a terra… foi uma coisa que esteve também sempre presente”.

Além disso, refere, “é curioso que as minhas mãos já tinham essa memória e gestos do modelar muito intrínsecos e gravados, e daí essa naturalidade ao reencontrar-me com o barro”.

“A minha [casa] também é [de taipa]”, ri-se a outra Maya, ao aperceber-se de um novo acaso que compartilham, para além do nome e das raízes luso-alemãs.

As casas em taipa são tradicionais no Alentejo e constroem-se a partir da compactação de camadas de terra húmida entre taipais de madeira desmontáveis, removidos após a secagem.

 

Ateliê – Foto Nina van Dijk | Sul Informação

 

Da terra ao barro

No atelier, entram os últimos raios de sol da tarde. Numa vitrine, várias peças em escultura-cerâmica foram expostas, colorindo o espaço através das suas variadas formas e cores. É no atelier que grande parte do processo criativo se desenvolve.

Contudo, para Maya Fernandes Kempe não existe tal coisa como “ah, vou para o meu atelier inspirar-me”, sublinha. É durante os rituais diários, como as caminhadas pelo monte, que a artista vai atrás do seu entusiasmo.

“Trabalho temas muitos distintos… Isto ainda está muito vivo”, refere, apontando para a vitrine, onde foram colocadas as vinte e uma peças cerâmicas acabadas de chegar da sua exposição “Sementes”, inaugurada em Lisboa a 15 de março. “Quero muito continuar”, termina.

Sobre o processo de idealização do projeto “Sementes”, Maya revela que o objetivo era recolher sementes autóctones da região do Baixo Alentejo e transformá-las em escultura-cerâmica, com base numa “seleção estética” e a partir da “ligação com as respetivas plantas”.

“Eu descobri imagens de sementes ampliadas na internet, e fiquei logo ‘eu quero fazer isso em cerâmica’, porque vi escultura, e depois foi todo um processo. Fiz a primeira residência artística na Cultivamos Cultura, onde aprendi como é que se recolhem e tratam as sementes para serem separadas do resto que as envolve, e como é que trabalho com os microscópios para ter imagem”, conta.

O próximo passo é fazer as sementes da região sinalizadas pela equipa do projeto da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, para chamar a atenção. Espécies como o carvalho ou o linho-marítimo são algumas das consideradas como criticamente em risco na região da Costa Sudoeste.

Partindo de um lugar-comum que, do mundo natural, faz crescer as suas raízes, Maja Escher explica que, nos seus projetos, a relação com lugares específicos e pessoas é fulcral no processo criativo. “Estava aqui a pensar, a ouvir a Maya a falar… eu acho que os meus projetos partem sempre da relação que as pessoas estabelecem com os lugares que habitam e isso pode ser por via de histórias, canções, de sabedoria popular”.

Tendo crescido numa área do Baixo Alentejo e Alentejo Litoral densamente povoada pela monocultura de eucalipto, Maja reflete que “essa camada de questionamentos ecológicos”, que partem da sua experiência corpórea, refletem-se também nas suas pesquisas artísticas.

“É estar nas poças, estar na lama, apanhar as ervas, os teus brinquedos serem as pequenas sementes e ervinhas… Neste momento, estou um bocadinho numa fase em que estou a juntar esta coisa da relação com os lugares e com as pessoas; de como pensar o futuro ecológico de uma certa região, neste caso a nossa”, conclui.

“Isto diz-me muito”, responde Maya Fernandes Kempe, refletindo ainda sobre o seu último projeto “Sementes”, demasiado fresco para falar de outros trabalhos mais antigos. ”É exatamente o que eu sinto. Desde que mergulhei neste conhecimento, é como se abrisse uma porta. A relação é tão íntima, eu pesquisei tanto sobre estas plantas todas que é quase como ‘ah, estás em flor, boa, mas no ano passado estiveste em flor um mês antes’”.

 

Ateliê – Foto Nina van Dijk | Sul Informação

 

Quando a arte e o território se cruzam

Apesar da ligação que ambas as artistas estabelecem com os elementos da natureza, desde a terra que dá vida ao barro, ao fogo que o coze, os seus projetos não podem ser confundidos com “artivismo” ou enquadrados na figura do “artista-ativista”.

“Eu vou mesmo atrás do meu entusiasmo, ou seja, a vontade de preservar ou proteger surgiu com o projeto [Sementes], mas não antes”, diz Maya Fernandes Kempe.

Ainda que um dos seus trabalhos, desenvolvido em 2016, tenha sido influenciado pelo problema da escassez dos recursos hídricos da região, resultando na construção de uma “máquina de fazer chuva”, Maja Escher esclarece que os seus trabalhos não têm o intuito de “preservar”, palavra que associa a algo estanque, contrário à natureza do próprio barro, efémero.

Sobre projetos futuros, o vento traz boas notícias. Numa região do país onde a cultura artística se esforça por continuar viva, com o surgimento de novas residências artísticas, projetos colaborativos e fundos municipais, ambas as artistas querem continuar a fazer da região um lugar de referência para o seu trabalho.

Para Maja, que, de Odemira e mais tarde Lisboa, fez sua casa, os novos apoios revelam-se importantes para continuar o seu trabalho a par com o território onde cresceu. “Este ano e o ano passado foram os primeiros anos em que desenvolvi projetos que estavam a ser apoiados por estruturas culturais locais e isso permitiu-me voltar. Enquanto artista plástica, há sempre esta ideia de viveres nas grandes cidades e da dificuldade que se sente de voltar para um território ou uma zona mais rural”, refere.

A jovem artista acrescenta que o que é importante nestes projetos que acontecem no território é que, de alguma maneira, potenciem estruturas já existentes. “Como o nosso concelho é tão grande, é muito fácil cada um estar a fazer a sua coisa na sua aldeia, ou no seu projeto… Eu sinto que colaborar é uma coisa que estamos todos a querer cada vez mais”, salienta.

Para terminar, relativamente a Maya, “Wild Clay Potential” é o mote de um dos seus novos projetos a desenvolver em 2025, em parceria com a plataforma Cultivamos Cultura, em São Luís.

A partir de “barro selvagem”, Maya, em residência artística, irá, após pesquisa e trabalho de campo, procurar o barro na região, processá-lo e criar peças.

Além destas novidades, espera “entusiasmadamente” começar um outro projeto, em breve, também ligado ao território. “Tem a ver com a região também, porque essa faísca do entusiasmo veio de Sobral, artista popular que eu não cheguei a conhecer, mas conheço a família e o trabalho dela, pelo qual estou completamente apaixonada. A ideia é convidar perto de cinquenta pessoas da região de diferentes idades, backgrounds e profissões para, comigo, criarmos no barro criaturas das suas fantasias, sonhos ou histórias que ouviram na infância”, conclui entusiasmada.

 

Nota: Artigo escrito por Nina van Dijk no âmbito de um trabalho para a unidade curricular de Laboratório Notícia e Entrevista do curso de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH

 

Leia mais um pouco!
 
Uma região forte precisa de uma imprensa forte e, nos dias que correm, a imprensa depende dos seus leitores. Disponibilizamos todos os conteúdos do Sul Infomação gratuitamente, porque acreditamos que não é com barreiras que se aproxima o público do jornalismo responsável e de qualidade. Por isso, o seu contributo é essencial.  
Contribua aqui!

 



Comentários

pub