Novo projeto quer parar a desertificação no Baixo Alentejo

Há quatro áreas de intervenção, duas no concelho de Mértola, no Parque Natural do Vale do Guadiana, uma em Beja e outra em Barrancos

Maria José Roxo, Cristina Branquinho e María Bastidas, com Filipe Silva  – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Num Baixo Alentejo fustigado pela seca – onde, em 80 anos, o valor médio de precipitação na região caiu para metade -, o clima e as más práticas agrícolas fizeram com que 94% da região se tornasse suscetível à desertificação.

O projeto REA Alentejo, apresentado há poucos dias no Parque Biológico da Cabeça Gorda (Beja), quer criar um modelo de reabilitação de ecossistemas para combater o problema nas zonas semiáridas do sudeste de Portugal.

Os objetivos do projeto são criar um modelo replicável que permita restaurar a produtividade agrícola e florestal nas zonas semiáridas do sudeste de Portugal, que potencie uma melhoria da saúde do solo, do funcionamento dos ecossistemas e, consequentemente, da qualidade de vida das comunidades rurais.

Os dados revelados na apresentação do REA Alentejo, um projeto promovido pela Associação de Defesa do Património de Mértola (ADPM), mostram que a situação é muito grave e está próxima de um ponto de não retorno.

Assim, cerca de 94% da NUTS Baixo Alentejo é suscetível à desertificação. Na margem esquerda do Guadiana, a região de Mértola regista mesmo 96% de suscetibilidade a este fenómeno. Estas conclusões são dos estudos realizados pela equipa da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH), que coordena o Centro Experimental de Erosão de Solos da Herdade de Vale Formoso.

A região NUTS do Baixo Alentejo, que compreende 13 concelhos – entre os quais Beja, Mértola e Serpa -, apresenta 38% do seu território com suscetibilidade crítica à desertificação, 35% muito elevada e 21% elevada (e apenas 5% moderada e 1% reduzida).

Já na margem esquerda do Guadiana, os valores sobem quase aos 100%, com 96% da área suscetível à desertificação (32% crítica, 37% muito elevada e 27% elevada).

 

Área com elevada suscetibilidade à desertificação na Serra de Mértola – Foto: Projeto REA Alentejo

 

Promovido pela Associação de Defesa do Património de Mértola (ADPM), o REA Alentejo conta ainda com a parceria de várias organizações académicas e governamentais, como a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH), a Junta de Freguesia da Cabeça Gorda (JFCG) e a Câmara Municipal de Barrancos (CMB), em colaboração com o Centro de Experimentação do Baixo Alentejo – DRAAL.

«Temos vindo a assistir, nos últimos anos, a um elevado grau de degradação dos solos nesta região, como consequência da desertificação. Este projeto pretende incrementar, em larga escala, aquilo que tem vindo a ser o trabalho da ADPM no combate à desertificação e restauro dos habitats de montado. Acredito que o REA Alentejo será de grande importância para a região, quer pela dimensão da atuação, quer por se tratar de um projeto a implementar em áreas públicas e privadas», explica María Bastidas, coordenadora do REA Alentejo.

O projeto terá quatro áreas de intervenção: o Centro de Estudos e Sensibilização Ambiental do Monte do Vento e a Herdade de Vale Formoso – ambos inserido no Parque Natural do Vale do Guadiana – e o Parque Biológico da Cabeça Gorda (Beja) e o Perímetro Florestal de Barrancos – áreas de elevado Risco de Erosão Hídrica, inseridas na Reserva Ecológica Nacional.

A investigadora Maria José Roxo, da NOVA FCSH, que coordena o Centro Experimental de Erosão de Solos da Herdade de Vale Formoso, em declarações ao Sul Informação, mostra-se preocupada pela continuação das más práticas agrícolas em zonas onde os riscos de desertificação são evidentes, e que têm vindo a ser agravados pela introdução do olival (e não só) intensivo e super intensivo, permitido pela aparente disponibilidade de água garantida pela albufeira de Alqueva.

Recordando outras panaceias para a agricultura do Alentejo que deram maus resultados (como a campanha do trigo dos anos 40 e 50), Maria José Roxo defendeu que «implantar culturas intensivas e super intensivas em solos que não têm qualidade só vai agravar os problemas, nomeadamente quando essas culturas forem retiradas de lá».

«Não quer dizer que não haja soluções, mas é preciso ter políticas e práticas para alterar a situação».

Por seu lado, Cristina Branquinho, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), acrescentou que «custa muito dinheiro regenerar ecossistemas», até porque nem sempre é possível que isso aconteça «só com regeneração natural, que, além disso, demora muito tempo». Ou seja: «curar a doença é sempre mais caro que evitá-la».

 

Visita ao projeto em curso no Parque Biológico da Cabeça Gorda – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 

A necessidade de conter o avanço da desertificação do território em Portugal surge com mais força sempre que há seca. Mas, segundo Cristina Branquinho, as regiões mais afetadas pelo problema «não têm voz». «Quando há seca em Viseu, isso torna-se um problema grave a nível nacional, mas quando isso acontece no Alentejo é como se as pessoas já estivessem habituadas. É difícil que a situação do Alentejo tenha impacto na política e no resto das práticas».

A investigadora defende mesmo a criação de medidas de discriminação positiva para os agricultores que, nas zonas mais deprimidas e afetadas pela desertificação, optarem por práticas de regeneração, que permitam manter ou criar solo, e assim preservar a água. «A agricultura do perímetro do Alqueva não devia receber subsídios, mas estes agricultores deviam receber subsídios. Deviam ser pagos pelos serviços de regulação do ecossistema que fornecem, para não estragar o solo, que é a nossa reserva para o futuro», considerou, em declarações ao Sul Informação.

Alice Nunes, também da FCUL, não tem dúvidas: «Se esta agricultura super intensiva propiciada pelo Alqueva é promovida por fundos de investimento, por capital de risco, então o capital que assuma esse risco, não precisa de subsídios». Esse dinheiro deve ser aplicado, defende, nos agricultores que adiram a práticas que permitam «preservar o sequestro de carbono nos solos para que, daqui a muito tempo, ainda haja água para a sociedade como um todo».

Só que não é isso que está previsto até na nova Política Agrícola Comum…

«As políticas agrícolas são formatadas em função daquilo que é uma Europa que não é Europa Mediterrânica. Não tem esta componente específica territorial daquilo que é importante fazer nos países do sul», admite Maria José Roxo.

«2022 foi uma seca na Europa toda e, pela primeira vez, a Alemanha estava preocupada com a seca. Mas a seca é um cenário comum em três ou quatro países da Europa Mediterrânica, que também fazem parte da União Europeia, mas que não têm força suficiente para implementar políticas mais focadas nestes aspetos. A nível europeu, não temos ainda voz», lamentou, por seu lado, Cristina Branquinho.

María Bastidas, sublinha um aspeto: «Em Portugal, só há medidas reativas em relação à seca [como os apoios à construção de charcas para abeberar o gado], não existe um olhar estratégico que assuma que vamos ter escassez de água de forma cíclica e que, portanto, temos de conseguir aprovisionar-nos em anos mais ou menos razoáveis».

Além disso, salienta Maria José Roxo, «há muito tempo que sabemos que uma política muito boa no Alto Alentejo pode ser um completo desastre no Baixo Alentejo. É inacreditável como uma política se aplica sem ter em conta o território e as suas diferenças». Por isso, diz, «a solução para o Monte do Vento pode ser uma, mas para Barrancos ser outra».

 

Área crítica na Serra de Mértola – Foto: Projeto REA Alentejo

 

Em 80 anos, o valor médio de precipitação na região caiu para metade

Entre 1940 e 2022, os dados recolhidos pela Estação Meteorológica de Vale Formoso permitiram traçar um cenário de diminuição acentuada na média de precipitação anual, por décadas.

Se, na década de 40, o valor médio anual de precipitação era de quase 800 (755,4 mm), na década de 2010, o valor diminuiu para 474,2 mm.

O projeto REA Alentejo salienta que «em particular em Mértola, é clara a diminuição da precipitação registada. De 1940 a 1970, a média anual de precipitação foi de 601 mm, enquanto nos últimos 30 anos (de 1991 a 2021) o valor desce para os 446 mm».

 

 

«A perda de produtividade dos solos é um problema sério em Portugal e, em particular, nesta região. Mas o fenómeno da desertificação tem diversos fatores e um deles é, sem dúvida nenhuma, a questão climática. A aridez tem aumentado, em consequência das temperaturas mais elevadas e devido a um declínio acentuado na precipitação nas últimas décadas, o que contribui para uma alteração na estrutura dos solos e nas quantidade e qualidade dos recursos hídricos», esclarece Maria José Roxo, investigadora da NOVA FCSH e responsável pelo CEEVF.

«No entanto, o uso do solo, através da agricultura intensiva, é também um importante fator a ter em conta nesta matéria, uma vez que esta prática não tem em vista a proteção do mesmo e este vai perdendo qualidade», acrescenta ainda a investigadora.

O projeto agora anunciado terá um papel importante no combate a estes problemas, porque vai permitir pôr em prática uma série de técnicas de reabilitação de ecossistemas num contexto de alterações climáticas- como a diversificação do Montado através da plantação de bosquetes, recuperação de linhas de água, melhoramento de pastagem com mobilização mínima e gestão do pastoreio.

As mudanças climáticas no Baixo Alentejo são também já uma evidência. A investigação levada a cabo pela equipa da NOVA FCSH no Centro Experimental de Erosão de Solos da Herdade de Vale Formoso, traz novas conclusões de episódios recentes relacionados com fenómenos extremos.

Se, por um lado, o último ano climático (de setembro de 2021 a agosto de 2022) não trouxe a seca mais severa de que há registo – apresentando o valor total anual de precipitação na ordem dos 398mm (ainda assim abaixo da média de 509mm, para o período de 1941/42-2021/22) -, por outro lado, só no período de Inverno (de Dezembro de 2022 a Fevereiro de 2023) choveram mais 200mm.

 

Impacto do gado bovino na desertificação – Foto: Projeto REA Alentejo

 

«Esta enorme irregularidade na precipitação e na distribuição pelas estações do ano contribui para uma grande incerteza em termos agrícolas e para o desencadear de episódios de erosão que favorecem a degradação dos solos, quando ocorrem chuvas intensas», esclarece Maria José Roxo.

«Este novo projeto coloca o foco maior na preservação e proteção dos solos. Vamos implementar uma série de medidas que passam, por exemplo, pela conversão de eucaliptais em fim de produção em sistemas silvoagropastoris, ou outras medidas, em ambiente agrícola, que promovam uma melhor gestão, que limite a erosão», conclui María Bastidas, coordenadora do REA Alentejo.

Até ao final do ano, o projeto prevê, entre outras coisas, beneficiar 81,1 hectares com ações de restauro de ecossistemas mediterrânicos, nos três concelhos de atuação (Beja, Mértola e Barrancos).

A apresentação do projeto contou ainda com a demonstração de boas práticas no Parque Biológico da Cabeça Gorda, semelhantes às que estão a ser implementadas pelos agricultores no Parque Natural do Vale do Guadiana, através do “Programa Territorial +Solo +Vida”, co-financiado pelo programa EEA Grants.

A visita às boas práticas na Cabeça Gorda (Beja), para a implementação de estratégias de adaptações às alterações climáticas, foi guiada por Filipe Silva, responsável pelo projeto “Life Desert-Adapt”, financiado pelo programa LIFE da União Europeia.

No Parque Biológico, que fica a poucas centenas da aldeia de Cabeça Gorda, aproveitando o antigo perímetro florestal, o projeto passa por «restaurar a parte ecológica e tornar o espaço mais agradável à visitação».

Aqui, aproveitando as curvas de nível, foram criadas zonas de cobertura do solo com estilha, que se decompõem rapidamente e garante também a manutenção de alguma humidade. Foram plantadas árvores e arbustos, nomeadamente de plantas aromáticas – como sobreiros, azinheiras, pinheiros-mansos, pinheiros-bravos, tojos, alecrim.

Para estimular o seu crescimento em ambiente árido, foi feito um caldo, à base de cinzas, leite fresco, fezes de vaca e água, entre outros ingredientes.

 

Visita ao projeto em curso no Parque Biológico da Cabeça Gorda – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

«Isto estava a correr bem, a crescer bem, mas depois vieram os javalis e comeram tudo. Até comeram os tojos e os pinheiros-bravos», lamentou Filipe. Mas houve espécies que escaparam, como o pinheiro-manso e o alecrim, o que já foi uma lição aprendida.

O objetivo é «criar condições para formar solo e para ter água. Sem uma coisa, a outra não resiste». «Planto a mesma árvore num solo destes ou lá em baixo, junto à ribeira, onde já há solo fofinho, lindo, e a diferença é enorme», explica Filipe Silva.

Mas, apesar dos revezes, o projeto na Cabeça Gorda, promovido no âmbito do “Life Desert-Adapt”, está a ter bons resultados. Mas há que esperar, que ter paciência, porque a regeneração não é, de facto, um processo rápido.

O REA Alentejo, apesar dos bons resultados esperados, será mais um projeto em que a paciência será necessária, para que se possa ver os seus resultados.

 

Sobre o Programa Territorial +SOLO +VIDA

O Programa Territorial +SOLO +VIDA é um projeto de combate à desertificação que pretende promover a mitigação e a adaptação às alterações climáticas em 94 hectares inseridos na área do Parque Natural do Vale do Guadiana e, em conjunto, com 18 agricultores-parceiros com explorações agrícolas situadas nos concelhos de Mértola e Serpa.

Essa intervenção está a ser realizada através da implementação de dez boas práticas agrosilvopecuárias e é enquadrada por um modelo de governança participativo que pretende reunir todos os agentes deste território.

Este projeto é promovido pela Associação de Defesa do Património de Mértola (ADPM), em parceria com a Cooperativa Agrícola do Guadiana, a Natural Business Intelligence, a Universidade do Algarve e a International Development Norway, com cofinanciamento do programa europeu EEA Grants.

 

Sobre o Projeto LIFE Desert-Adapt

O projeto Desert-Adapt, financiado pelo programa LIFE da União Europeia, visa desenvolver, demonstrar e promover estratégias para adaptação às alterações climáticas em áreas mediterrânicas sob risco de desertificação.

Com o objetivo de testar técnicas para reverter a degradação do solo, ao longo do projeto foram intervencionados 300 hectares nos concelhos de Mértola, Serpa e Beja.

Foi ainda criada uma “Rede de Replicadores”, com cerca de 40 entidades privadas e públicas envolvidas, comprometidas a implementar um “Modelos de Adaptação à Desertificação” em mais de 3000 hectares.

O Modelo permite melhorar a eficiência do uso do solo, através da implementação de bosquetes biodiversas e outras medidas específicas para reduzir a erosão e promover a sua conservação.

 

 

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