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O Fogo, a Floresta e os equívocos

Existem palavras que, tal como desfiles de roupa, revelam tendências e ditam a moda linguística. Substantivos, verbos e advérbios, neologismos e anglicismos, entram e saem do léxico ao sabor das modas e das estações do ano.

Há tendência para nos focarmos na forma das palavras, sem questionar o seu conteúdo ou significado, como se fossem só um embrulho ou adereço desprovido de substância. Gostamos das palavras brilhantes e organizadas em frases bem polidas, imaculadas e pujantes, esquecendo que o uso das palavras pode, ou não, ter consequências.

Podem inebriar, quando se alinham em poemas e prosas sublimes, podem ensinar e revelar os segredos das coisas, quando transmitem o pensamento científico e a filosofia das inquietações, ou podem manipular quando nada mais existe para além da forma.

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Nesta última categoria, encontram-se alguns dos termos do jargão do Fogo, onde não se questiona o conteúdo e o significado das palavras que se usam para falar dele, nomeadamente, combustível e floresta.

No jargão do fogo, a vegetação arbustiva e sub-arbustiva é classificada como “combustível”, como se se tratasse de um amontoado de coisas secas sem vida, sem diversidade, sem relevância nem função e a sua simples existência potenciasse, por si só, o fogo.

Classifica-se como “floresta” todo o território do interior continental português, amálgama de áreas de monoculturas predadoras, de matas, matos, manchas imensas de espécies invasoras, incultos, áreas degradadas, pedreiras, lixeiras, infraestruturas, armazéns e casas dispersas que, para ser floresta, tem de ser imaginada.

Qual Laurissilva ou pequena Amazónia, muito verdes, com árvores magníficas e em diferentes estágios de evolução – umas muito antigas e outras a emergir do solo – extensões a perder de vista, estratos de vegetação intocados, dos líquenes e fungos aos grandes arbustos, muita frescura, sombra, abundante biodiversidade e ricos ecossistemas. Há florestas assim em Portugal continental? Temos florestas temperadas? Atlânticas? Boreais e tropicais não temos, de certeza. O clima mediterrânico, que caracteriza a maior parte do nosso território continental, acolhe florestas? Ou serão matas (bosques mediterrânicos de espécies esclerófitas), matorrais (maquis e garrigue) e alguns povoamentos florestais, no sentido exclusivo da produção de madeira?

A fraca cultura científica de quem “gere os incêndios” deixou arder o vale glaciar do Zêzere e extensas áreas do Parque Natural da Serra da Estrela. Tudo foi combustível, tudo foi mato que não foi limpo…a biodiversidade e a paisagem não pesaram na “estratégia de combate”.

A integração das florestas no Instituto da Conservação da Natureza (ICN) tem-se revelado um desastre, que deve ser reconhecido. Comprometeu-se o pouco que ainda existia do conhecimento e gestão racional das áreas protegidas, da conservação da Natureza e da biodiversidade do ICN, apesar do desinvestimento continuado do Estado, e promoveu-se a esquizofrenia de conceitos, de “estratégias” e planos que desorientam e confundem, do ICN-F.

As áreas protegidas e os sítios classificados portugueses, pela sua singularidade e importância, a todos os níveis, devem voltar a ter uma gestão própria (sem as “florestas”), retomando o espírito da sua criação como espaços de promoção da Natureza, da sua conservação, da inovação e da cultura científica em equilíbrio com as actividades humanas.

A “floresta” deve ser gerida associada à agricultura, como partes indivisíveis da nossa paisagem de produção e protecção, respondendo, de forma racional, à variedade orográfica, climática, ecológica e económica do nosso território.

Já os romanos, entendendo a especificidade dos territórios do Mediterrâneo, transformaram e construíram a nossa paisagem, organizando o “campo” em três principais áreas ou sistemas: o “ager”, a que correspondiam as áreas mais intensivamente cultivadas; o “saltus”, ou a área ocupada por pastagem, pecuária e agricultura menos intensiva; e a “silva”, ou matas de protecção e produção, de onde provinha a lenha e outros sub-produtos importantes.

Essa classificação relacionava-se, obviamente, com a adaptação do uso às características do relevo, à fertilidade do solo e à disponibilidade de água. Esses princípios básicos de organização do espaço rural, de correspondência do uso às circunstâncias do meio (aptidão/adaptação) não deviam ser contrariados.

Só com a organização do espaço rural baseada na matriz ecológica da paisagem, se inicia o processo de adaptação às alterações climáticas e o combate aos “fogos rurais”.

A concretização dessa organização precisa de gente que o faça. Para isso, são precisas políticas e medidas concretas de fixação da população que promovam, de forma organizada, sustentável e racional, a agricultura, a pastorícia, a silvicultura e outras actividades complementares.

São precisos incentivos financeiros para gerar uma economia rural robusta e organizada que garanta a preservação e perenidade dos nossos recursos naturais fundamentais (ar, água, solo e vegetação)? Claro. Os nossos pesados impostos (também) deveriam ser direccionados para esse dever do Estado.

Como se convencem as pessoas a permanecer e zelar pelo espaço rural? Com políticas que o permitam e promovam. Planeando, agindo por antecipação, pagando, isentando, premiando, melhorando, cooperando, dando o exemplo.

Precisamos de mais planos de combate aos fogos rurais, comissões e grupos de peritos em fogos, discursos e palavras sem conteúdo, processos, tribunais e coimas por falta de limpeza das faixas de combustível que ninguém entende?

Ou precisamos de um desígnio nacional que impeça que o nosso território, ano após ano, se converta num monstruoso inferno que se auto-alimenta?

Porque, fogos, sempre os haverá.

 

 

Autora: Amélia Santos é arquiteta paisagista (Prof. convidada da FCT/UAlg). A autora escreve com a antiga ortografia.

Nota: Todas as fotos são da autoria de Manuel Lagoa e foram feitas em Samelas, Manteigas, no passado mês de Agosto

 

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