Foi um heatburst o «fenómeno raro» que aconteceu na madrugada de 21 de Maio em Beja

Além de uma subida súbita de temperatura, houve ainda um episódio de vento forte em Beja

Chama-se Heatburst o fenómeno raro que aconteceu na madrugada de 21 de Maio, em Beja, quando se verificou uma subida repentina da temperatura, de 22.9 °C para 33.4 °C em cinco minutos. Aliás, em algumas zonas do interior, a madrugada ficou marcada como a “mais quente desde que há registos”, anunciou o Instituto Português do Mar e da Atmosfera.

O IPMA salienta que a noite e madrugada de 21 de maio foram «excecionalmente quentes, quer no contexto do mês de Maio, quer no de registos anuais». Com efeito, acrescenta, «os valores de temperatura do ar que foram persistentemente observados durante o período noturno, designadamente em algumas áreas do interior, entre 26 e 32°C, terão configurado, em alguns locais, a madrugada mais quente desde que há registos».

Segundo o IPMA, nesse dia, o estado do tempo em Portugal continental foi condicionado pela presença de «um núcleo depressionário à superfície com expressão em altitude, centrado a oeste do território e que forçava, em deslocamento lento para nordeste, uma circulação de sul/sueste». Esta circulação transportava uma massa de ar quente e seco proveniente do norte de África e com poeiras em suspensão.

A humidade relativa do ar era bastante baixa (entre 10 e 40%), em especial numa camada compreendida entre a superfície e os 3000 metros de altitude. O conteúdo em água precipitável era modesto (< 15 mm) em especial durante a madrugada, com exceção de uma faixa sobre o sudoeste do continente, em que se apresentava moderado (até 30 mm). Nos níveis altos, mas mais para este, uma crista anticiclónica estendia-se desde o norte de África até ao Mediterrâneo ocidental.

Segundo diversos relatos, entre as 04h30 e as 05h00 UTC (05h30 e 06h00, hora local) ocorreu um episódio de vento forte em Beja que, comprovadamente, provocou a queda de cerca de uma dezena de árvores de grande porte.

Os perfis verticais da atmosfera revelados por diversos modelos de previsão numérica confirmavam um ambiente caraterizado por instabilidade nos níveis médios e altos, mas com a intrusão de uma camada muito seca e estável nos níveis mais baixos, configurando assim uma situação apenas compatível com convecção de base elevada. Por outro lado, era visível a persistência de um fluxo moderado de este-sueste nos níveis mais baixos.

Nestas condições, seria muito pouco provável a formação de um fenómeno do tipo tornado, quer em associação a supercélula (tornado mesociclónico), quer em associação a processos de convergência na camada-limite (tromba terrestre).

Foi ainda notório, em especial no sul de Portugal continental e durante a madrugada, a ausência do registo de precipitação nas estações de superfície, tendo havido apenas alguns relatos de aguaceiros fracos de “lama” que conseguiam chegar ao solo.

As observações da estação IPMA de Beja mostraram rajadas de vento até 14.6 m/s (53 km/h) entre as 04h40 e as 04h50 UTC, portanto dentro do período correspondente aos relatos.

Dentro do mesmo período, provavelmente entre as 04h40 e as 04h45 UTC, a temperatura do ar na estação subiu de 22.9°C para 33.4°C, tendo posteriormente descido para os 25.5°C observados às 04h50 UTC e a humidade relativa desceu de 49% para 13%, tendo posteriormente subido para os 37% observados às 04:50 UTC.

O IPMA salienta que esta significativa e rápida subida de temperatura (+10.5°C) e descida de humidade relativa (-35%) num período de poucos minutos, constitui um «fenómeno raro». Este fenómeno foi observado noutras estações da rede IPMA, embora com menor expressão.

Foram aplicadas secções de corte, sempre sobre o mesmo segmento orientado, que permitiram acompanhar a evolução da refletividade radar segundo a vertical, ao longo do período 04h20-04h50 UTC, em que um aglomerado convectivo se aproximou e passou sobre a área da cidade de Beja.

As secções de corte (observadas de modo a que o sul está para a direita) mostram que os valores máximos de refletividade do referido aglomerado se situavam a 5500-6000 m de altitude e eram baixos, tipicamente inferiores a 25 dBZ, e a decrescer no decurso do período considerado, o que era sinónimo de uma dissipação progressiva do aglomerado.

Por outro lado, a própria corrente descendente do aglomerado, associada aos processos de precipitação na atmosfera, foi persistente e observada entre as 04h20 e as 04h40 UTC até ao limite inferior de observação do radar.

No entanto, contrariamente à situação habitual em que a precipitação chega ao solo, no presente caso verificou-se que nesta corrente descendente a refletividade era bastante inferior aos valores máximos presentes em altitude.

Esta progressiva diminuição da refletividade no sentido dos níveis inferiores desta corrente, sugere a persistente ocorrência de evaporação/sublimação na sub-camada precipitante, potenciada pela presença de ar muito seco.

Justamente entre as 04h40 e as 04h50 UTC, quando o aglomerado se propagava sobre Beja, observa-se o desaparecimento de refletividade na subcamada abaixo dos 3000 m, com a exceção de vestígios da ordem de 0 dBZ. Esta caraterística manteve-se nas observações seguintes, com o aglomerado em progressão já para nor-nordeste da cidade.

Esta análise sugere que uma corrente descendente se manteve pelo menos por um período de 20 minutos (04h20-4h40 UTC) com evidência de se encontrar sujeita a processos evaporativos e que, ao passar sobre Beja, se terá dissipado mantendo-se como provável virga.

 

As observações com radar mostram, portanto, que no período 04h40-04h50 UTC, o volume de ar descendente nesta sub-camada situada abaixo de 3000 m já não deveria conter água na fase líquida, ficando então apenas sujeito a aquecimento por compressão adiabática, o que terá produzido o aquecimento do ar e a brusca diminuição de humidade no seu trajeto descendente até chegar à superfície.

Na presença de ar bastante seco e quente em camadas inferiores da troposfera, as correntes de ar descendentes com potencial precipitante e provenientes das massas nebulosas sobrejacentes, podem ser sujeitas a processos de evaporação (e sublimação) nessas camadas. Estes processos causam o arrefecimento do ar seco por perda de calor latente envolvido nas mudanças de fase e, consequentemente, ao aumento da sua densidade que, por gravidade, produz uma descida organizada.

Se estes processos de arrefecimento se mantiverem ao longo de toda a descida até ao solo, produzem um fenómeno de downburst clássico, em que ar mais frio e húmido do que o ar ambiental é transportado para a superfície.

Embora esta descida de ar envolva compressão adiabática e correspondente aquecimento, a verdade é que nas condições mais habituais o arrefecimento evaporativo referido largamente compensará este aquecimento. No entanto, como se terá verificado neste episódio, poderá suceder que por uma conjugação de fatores, a massa de água precipitante evapore totalmente antes da chegada ao solo. Se assim for, o aquecimento e perda de humidade do ar descendente, por via da compressão adiabática sofrida, começarão a dominar.

O IPMA esclarece que, se o aquecimento for excessivo, a corrente descendente poderá ser totalmente contrariada e nem sequer chegar ao solo. Se tal não ocorrer, no entanto, a corrente descendente atingirá o solo ainda com algum momento linear, não obstante o aquecimento a que foi sujeita.

Este tipo de fenómeno designa-se habitualmente por heatburst. O momento linear da corrente descendente poderá ser inferior ao de um downburst clássico mas, ainda assim, manter algum potencial para a produção de rajadas convectivas na região mais baroclínica do outflow, como foi o presente caso.

 

 

 



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