Terras sem Sombra encerra entre histórias de piratas e a grande música de Mozart

Festival terminou a sua 17ª edição entre Vila Nova de Milfontes, Odemira, os portinhos de pesca deste concelho e o cabo Sardão

Vila Nova de Milfontes, Odemira, os portinhos de pesca deste concelho e o cabo Sardão foram o palco do fim de semana de encerramento da edição deste ano do Festival Terras sem Sombra. Como sempre, houve música erudita ao mais alto nível, mas também património cultural e ambiental.

A jornada começou no sábado, dia 18, em Vila Nova de Milfontes, frente ao forte de São Clemente, mais conhecido como «o castelo». Uma parte do grupo de quase oito dezenas de pessoas que se reuniu na Barbacã, a esplanada da antiga fortaleza de génese filipina (hoje Largo Brito Pais), para ouvir o historiador António Martins Quaresma, que foi o guia da visita ao património cultural, acabou por dispersar, quando se soube que a visita ao monumento, afinal, não seria possível.

António Martins Quaresma recordou que o rio Mira, apesar de ser uma espécie de fim de mundo, sempre foi uma estrada líquida a ligar o interior do território, hoje de Odemira, ao mundo. Uma ligação que começou em tempos remotos e que foi continuando ao longo dos séculos.

Aliás, segundo uma crónica da época, foi aqui que Ricardo Coração de Leão, em 1190, entrou no rio, quando ia a caminho da terceira cruzada na Terra Santa. O rei inglês subiu o rio e foi até Odemira, onde fez a aguada e descansou.

O território concelhio de Odemira foi reconquistado aos mouros pelas tropas cristãs em 1166, sendo doado depois à Ordem de Santiago, mas a sua zona litoral, que hoje constitui a povoação de Milfontes, manteve-se despovoada durante as centúrias seguintes.

 

Alguns séculos depois, no século XV, Vila Nova de Milfontes até foi sede de concelho, de modo a atrair população e assim tentar garantir a defesa da foz do Rio Mira.

O rei D. João II criou em Vila Nova de Milfontes um «couto de homiziados», ou seja, uma povoação onde, quem quisesse ir para lá morar, era perdoado dos seus crimes. Mas nem assim, tentando atrair quem tinha contas a ajustar com a justiça, Milfontes ganhou novos moradores. É que, recordou o historiador, «viver perto do mar, naqueles tempos, era perigoso, porque havia corsários e piratas, que atacavam a navegação mas também as populações».

Um dos mais célebres ataques foi o de Murad Rais, no século XVI, um corsário de Salé, na costa marroquina, que, a um domingo, entrou pelo rio adentro, capturou as pessoas que estavam na missa na Igreja de Nossa Senhora da Graça, levando-as para as vender como escravas em Argel.

Um século mais tarde, em 1597, quando Portugal estava sob o domínio filipino, foi uma armada inglesa e holandesa que entrou pela barra, para atacar Milfontes, que tinha então apenas sete moradores. Ingleses e holandeses desembarcaram e foram até à igreja, cometendo todo o género de desacatos, em especial desrespeitando a imagem de Nossa Senhora da Graça, que passearam pelas ruas, ao pescoço de um burro.

Foi precisamente Filipe II que trouxe para Portugal dois engenheiros florentinos, um deles Alexandre Massay, que vai construir o forte de S. Clemente, «uma fortificação moderna preparada para receber artilharia e para se defender da artilharia».

Mas, como recordou Martins Quaresma, «este forte teve sempre uma vida muito modesta». De tal forma que, no século XVII «estava completamente abandonado, não tinha pólvora, não tinha guarnição».

 

Com a diminuição da pirataria e a restauração da independência portuguesa, que fez diminuir os ataques de corsários ingleses e holandeses, o forte foi perdendo importância. Nos finais do século XIX, deixou mesmo de ter funções defensivas.

Em 1903, foi vendido em hasta pública, a um grande proprietário agrícola do concelho de Odemira. Em 1939, o novo proprietário, Luís Manuel de Castro e Almeida, mandou restaurar a fortaleza, alterando parte da sua estrutura original e transformando-a na sua residência particular, aproveitando então parte do espaço para utilização turística. Criou no castelo «uma espécie de turismo de habitação avant la lettre». Nem os fantasmas que assombravam o castelo afastavam estes primeiros turistas. Depois de 2009, o edifício voltou a funcionar exclusivamente como habitação privada.

O edifício acabou por ser classificado como Imóvel de Interesse Público em 1978, mas isso não impediu que os proprietários fossem fazendo obras a seu bel prazer, descaracterizando o castelo.

O castelo, cujas portas se mantiveram fechadas ao grupo de participantes no Festival Terras sem Sombra que o queriam visitar, tem estado à venda nos últimos anos. António Martins Quaresma exprimiu o desejo – que é o de muitos odemirenses – de que «o edifício possa ser comprado pela Câmara Municipal de Odemira».

Ainda antes de deixar o largo da barbacã, o historiador falou das figuras míticas da foz do Mira, como o «peixe-homem, figura temível, um ser híbrido que se agarrava à borda dos botes de pesca fazendo-os naufragar».

 

Olhando para o monumento que se situa no centro da praça, Martins Quaresma recordou a viagem aérea que, em 1924, ligou Portugal a Macau, partindo precisamente de Vila Nova de Milfontes. Como comandante, o avião «Pátria», que era um velho aparelho do I Guerra Mundial, recuperado e adaptado a esta viagem nunca antes intentada, seguia António Brito Paes, nascido na freguesia odemirense de Colos e militar aviador. Com ele, nessa aventura aérea de milhares de quilómetros, iam Sarmento Beires e Manuel Gouveia.

Depois de mais esta página da história, o grupo desceu até ao rio Mira, ao cais onde atraca o barco que transporta os banhistas para a praia das Furnas, na margem esquerda.

Daí, seguindo pelo passadiço ribeirinho, subiu-se à rua da Estalagem, onde ainda se situa o antigo edifício da estalagem da Ordem de Santiago, criada em 1604 pelo comendador D. Pedro da Silva, depois de ter obtido de D. João III autorização para a abrir. É que, por ali, passava a estrada que ligava Lisboa ao Algarve. Estalagem e barca de passagem do Mira em Vila Nova de Milfontes eram essenciais para as poucas pessoas que então se aventuravam nessa longa viagem.

Mais acima, num local de onde antes se avistaria a foz do rio, fica a Igreja de Nossa Senhora da Graça, antiga igreja matriz de Milfontes e «com o castelo, edifício estruturante da teia urbana» da vila.

Mas havia tão poucos moradores, a vida era tão difícil nesta povoação longe de tudo e demasiado perto do perigo que vinha do mar, que, nos princípios do século XVI, «a igreja chegou a cair».

Aproveitando a frescura do interior da igreja, José António Falcão, historiador de arte e diretor do Festival Terras sem Sombra, recordou que a invocação de Nossa Senhora da Graça é «recorrente nas comunidades de pescadores da costa portuguesa», o mesmo acontecendo em Cascais, Setúbal ou Sines.

A imagem da Senhora da Graça, que ainda pode ser apreciada no interior da pequena igreja, terá sido obra de Francisco Correia Vestoria, um «mestre escultor e entalhador» de uma família que veio de Barcelos.

 

Pelas ruas da atual Vila Nova de Milfontes, completamente virada para o turismo, o grupo seguiu até à pequena ermida de São Sebastião, hoje situada no meio da malha urbana, mas em tempos localizada no exterior, numa das entradas da povoação.

José António Falcão recordou que São Sebastião é considerado um «protetor contra as epidemias, daí que as ermidas com a sua invocação fossem edificadas à entrada das povoações», para serem uma «espécie de barreira simbólica». «Bem fizemos em vir aqui hoje», sublinhou, numa alusão à atual pandemia.

«Quando havia pestilências, era aqui, junto a estas ermidas, que se fazia grandes fogueiras com ervas aromáticas», supostamente para evitar que a peste e outras doenças contagiosas entrassem nas localidades.

À noite, foi a vez de o Cineteatro António Camacho receber um concerto do grupo Terra Nova, com direção musical de Vlad Weverberg. O programa incluiu uma peça de Amand Vanderhagen, seguida da Serenata para sopros K. 361, mais conhecida como «Gran Partita», de Mozart. O palco quase foi pequeno para receber os 13 elementos do ensemble, que interpretaram a peça mozartiana com virtuosismo, usando mesmo instrumentos da época, como a curiosa trompa de basset.

No domingo de manhã, seguiu-se a atividade ligada à salvaguarda da biodiversidade. De Vila Nova de Milfontes à Zambujeira do Mar, a manhã que concluiu a 17ª temporada do Festival Terras sem Sombra fez da costa alentejana, no concelho de Odemira, protagonista para três horas de visitação.

O convite para 19 de Setembro carregava o clamor das ondas oceânicas, céus de fim de Verão, falésias prateadas, aconchego para areais e enseadas. Uma manhã com a promessa concretizada de histórias de faina, materializadas nos portinhos de pesca que povoam este litoral inserido no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.

 

Como anfitriões, o pescador Fernando Manuel, o historiador António Martins Quaresma e o técnico do município de Odemira, António Jorge. Um trio que, perante os participantes na atividade, se fez narrador da importância do Portinho do Canal (Milfontes) e da Zambujeira no contexto da economia local. As espécies capturadas, a sua transação e a fixação dos preços, as artes de pesca ainda hoje utilizadas e a competição nem sempre justa entre faina tradicional e pesca de larga escala, suscitaram uma ação participada.

Sempre com o oceano fixo em tons de azul, a visita arribou ao ventoso promontório de Cabo Sardão. Aqui, onde as cegonhas nidificam nas falésias, a história de um farol que “chegou por mar”, com todos os materiais, ainda no século XIX, a serem desembarcados no rio Mira, para depois encontrarem carrego em carros puxados por bois. Um farol cuja torre foi construída, por engano, atrás do edifício.

Litoral de horizontes limpos, a abarcar do Cabo de São Vicente, no Algarve, ao Cabo de Sines.

No Setembro soalheiro, as palavras que recordam que este é um litoral de medos, a “Costa Negra”, outrora envolta em escuridão, depois iluminada com a instalação de faróis. Lugar de mitos e narrativas, como a da origem da localidade de Cavaleiro, bem próxima do Cabo Sardão.

No passado, face à perigosidade da costa, ali permanecia um vigia montado a cavalo. Havendo velas suspeitas no horizonte, logo partia o vigia para anunciar o perigo. O vigia de cavaleiro daria mais tarde origem ao topónimo da localidade, que se situa junto ao farol.

E assim, com este périplo a ligar património ambiental e cultural, com a música das ondas e do vento por trás, se concluiu mais uma edição do Festival Terras sem Sombra.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Nota: a parte final do texto, sobre a visita aos portinhos de pesca, no domingo, é da autoria do Festival Terras sem Sombra.

 

 

 



Comentários

pub