O Barranquenho quer ser a 3ª língua oficial de Portugal

Há um projeto que envolve o Município e universidades para estudar e preservar a língua local

«Adeu! Já me bô!», despediu-se a D. Ana Maria Pica, antes de abalar para a missa. Dessa forma simples, esta senhora de Barrancos despediu-se. Não estava a falar Português, não estava a falar Espanhol, mas sim Barranquenho. Que não é um dialeto, mas uma língua, como se verá.

O barranquenho, falado pelos habitantes de Barrancos, um concelho situado na margem esquerda do Guadiana, paredes meias com Espanha, é usado no dia a dia por quase todos os habitantes da pequena vila e das aldeias e montes ali à volta.

E falam essa língua, que é uma mistura de Português mais arcaico, com um Espanhol dotado do sotaque cantado da Andaluzia, desde as crianças pequenas até aos mais velhos. Como se pode constatar (e ouvir) ao caminhar pelas ruas da vila, o barranquenho é, de facto, uma língua viva, falada.

Porque faz parte do património imaterial e, no fundo, do modo de ser das gentes daquele concelho, a Câmara Municipal quer agora trabalhar para que o barranquenho seja objeto de investigação, que leve à sua preservação. «Não queremos que morra uma parte daquilo que foi a nossa herança cultural, daquilo que é a identidade desta terra e deste povo», salientou João Serranito Nunes, presidente da Câmara de Barrancos, em entrevista ao Sul Informação.

No futuro, como revelou o autarca, o objetivo é que o Barranquenho venha a ser considerado língua oficial de Portugal, a exemplo do Português e do Mirandês.

Para lá chegar, é preciso ainda muito trabalho. Por isso, a Câmara de Barrancos uniu-se à Universidade de Évora e ao Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, bem como ao CIDLeS (Centro Interdisciplinar de Documentação Linguística e Social), para, em parceria, levarem a cabo um projeto que estude e caracterize o barranquenho.

O projeto, para já com um horizonte de três anos, vai começar agora, começando por «formar pessoas da terra que saibam gravar, recolher e arquivar aspetos relativos ao modo de vida de Barrancos, como a culinária, as tradições da matança do porco, as festas de casamento, o património literário e oral, os contos, anedotas, refrões», como explicou ao nosso jornal Maria Victoria Navas, linguista, professora emérita da Universidade Complutense de Madrid e também investigadora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.

Mas o projeto passa também por criar uma gramática e fazer um dicionário do barranquenho, de modo a que «seja possível preservar a língua e ensiná-la às gerações vindouras», acrescentou Maria Victoria Navas.

«O município interessou-se por esta realidade cultural, que é património de todos nós. O objetivo é que esta língua não se perca e que seja estruturada. Para tal, há que dar-lhe ferramentas, nomeadamente uma gramática e um dicionário», acrescentou o autarca João Nunes.

 

José António Falcão, diretor artístico do Terras sem Sombra – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

O barranquenho foi, no fim de semana passado, dias 1 e 2 de Fevereiro, o tema da atividade de Património do Festival Terras sem Sombra. «Se há manifestação patrimonial por excelência, ela chama-se língua», começou por sublinhar José António Falcão, diretor artístico de um festival que também levou a Barrancos a música erudita (com o violoncelista espanhol Pedro Bonet) e uma atividade de biodiversidade (no Parque de Natureza de Noudar).

Além de ouvir falar barranquenho, com a ajuda de alguns dos seus falantes, como o presidente da Câmara João Nunes, a vereadora Dalila Lopes, ou a técnica superior da autarquia Carla Pica, a meia centena de pessoas que, no sábado à tarde, se passeou pelas ruas da vila, pôde ficar a conhecer a Praça da Liberdade, ou “Antigu Largu da Praça” (como se escreve e diz em barranquenho), onde se coloca o tabuado para a tourada das festas de Agosto, o bar «A Forja», onde se reúnem os mais jovens  da terra, o Museu Municipal de Arqueologia e de Etnografia e os recantos mais típicos. Tudo isto enquanto, pelas ruas, se cantava, em barranquenho e espanhol, cantigas antigas que ficaram na memória das pessoas locais.

No Museu, a D, Ana Maria Pica deu a receita de pinhonate, um doce tradicional da terra que, no formato e apresentação, se parece com as pinhoadas de Alcácer, embora não levem pinhões. Claro que a receita foi transmitida em barranquenho, com o mel a transformar-se em , por exemplo.«É um doce de Natá [Natal]», explicou a senhora. Delicioso foi depois poder provar esse doce, feito de massa frita às tirinhas, partidas aos bocadinhos a imitar os pinhões, embebidas em mel e colocadas sobre uma folha de laranjeira ou limoeiro, que lhe transmitia um cheiro a citrinos muito agradável.

Além da receita, a D. Ana Maria e outras senhoras, a D. Isabel («Isabé, em barranquenho», como disse ao Sul Informação) e a D. Leonor, também cantaram, em barranquenho e em espanhol, canções bem antigas.

 

 

O mais engraçado é que, em Barrancos, qualquer pessoa é trilingue, falando Português, Espanhol e Barranquenho. «Barrancos tem esta especificidade de ter uma população trilingue, que fala naturalmente espanhol com os espanhóis, português com os portugueses e, entre si, barranquenho», explicou o edil João Nunes.

A vereadora Dalila Lopes, que se formou em engenharia alimentar na Universidade do Algarve, em Faro, contou ao Sul Informação uma vez em que, pouco tempo depois de ter chegado ao Algarve, foi a uma papelaria fazer compras. «Falei em Português, mas a senhora que me atendeu achou que eu era sul-americana ou espanhola, por causa do sotaque»…Que faria se Dalila tivesse falado em barranquenho…

É que esta «é uma língua própria, que surgiu ao longo dos tempos neste espaço mais ou menos isolado, que está aqui entre Portugal e Espanha, criada por condições várias, culturais e geográficas, e que, faz parte da nossa identidade como memória coletiva. É um valor que há que manter e preservar», explicou o presidente da Câmara.

Quanto à oportunidade de divulgar esta língua e este património, João Serranito Nunes fez questão de agradecer ao Festival Terras sem Sombra que, tal como a Câmara de Barrancos, «também tem o património como um dos seus pilares».

Falando à noite, no Cineteatro de Barrancos, antes do início do concerto do jovem violoncelista espanhol Pedro Bonet, o presidente da autarquia recordou que «a língua barranquenha é um dos fatores da nossa identidade que deveremos preservar. Hoje ainda há bons falantes de barranquenho, mesmo nas idades pré-escolares, mas tememos que, com a globalização, isso deixe de acontecer no futuro».

«Daí a necessidade que sentimos, como Câmara Municipal, de ter um projeto que ajude a estruturar o barranquenho enquanto língua que amanhã possa ser ensinada nas escolas. Não queremos que morra uma parte daquilo que foi a nossa herança cultural. Esse é um dos pilares que aproveitamos para divulgar através deste festival. A oportunidade de termos aqui o Festival Terras Sem Sombra também nos leva a outros públicos, a outras paragens e tem uma outra dimensão cultural, artística e de valorização», disse ainda.

Apesar de o nosso país «não ser subscritor da Convenção Europeia das Línguas Minoritárias», o objetivo do projeto liderado pelo Município é que o barranquenho venha a ser reconhecido como língua oficial de Portugal.

«O barranquenho ainda hoje é uma língua viva e praticada por milhares de pessoas, apesar de cada vez sermos menos. Mas tem todas as condições para ser reconhecido como uma língua minoritária em Portugal», concluiu João Nunes.

 

Pelas ruas de Barrancos – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Como se fala barranquenho?

Língua – não oficial – da zona de Barrancos, onde se incluem a vila com o mesmo nome e algumas povoações próximas, o barranquenho conta com, aproximadamente, 3000 falantes. É filho da sua posição raiana, onde a influência das variedades meridionais do castelhano se faz sentir.

Uma das principais características consiste na remoção do l e do s e do r no fim das palavras, fenómeno bem andaluz.

O s, quando corta a palavra, aspira-se. Ainda na mesma área de influência, há a queda do d nas últimas sílabas quando entre vogais, e o j, tal como o ge, passam por vezes para o lado castelhano, usando-se nestes casos o x, tal como o v se ouve como b.

O e, quando no final da palavra, diz-se i, condição que ultrapassa o âmbito local e está normalmente associada à pronúncia alentejana.

Também o género de certos substantivos muda, como no castelhano; e os pronomes seguem a tradição do lado de lá da fronteira, antecedendo o verbo em vários casos – “vou-me” passa a “me bô”.

Não há, todavia, um conjunto de regras que permitam definir o barranquenho em termos absolutos, até por ele se transmitir quase exclusivamente pela forma oral, o que acaba por torná-lo mais rico enquanto falar popular.

 

A linguista Maria Victoria Navas – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

As origens do barranquenho

A linguista Maria Victoria Navas está a investigar o barranquenho, salientando que esta língua é «falada desde há muitos séculos». De tal forma que o «primeiro texto é do século XV».

A nível fonético, explicou a investigadora, «o português e o espanhol juntaram-se e deram lugar a uma terceira língua, que é o barranquenho». Para mais, a língua que se fala na zona de Barrancos tem influências do «Sul do Alentejo e do Sul de Espanha, da Andaluzia», que se notam, por exemplo, na forma de falar, cantada.

«Como Barrancos sempre foi uma região muito isolada, há muitos arcaísmos, traços do português do século XVI e também traços de leonismos», da língua falada em Leão, uma das regiões de Espanha.

Um dos exemplos da construção de frases à moda do português do século XVI é o uso do pronome impessoal antes do verbo – como em “se bebeu”, “se comeu”. Curiosamente, revelou a professora espanhola, em Barrancos, que é um «caldeirão de culturas», canta-se «em galego, folclore da América Latina, cante alentejano, também folclore andaluz e sevilhanas». Foi isso mesmo que aconteceu no sábado, quando o grupo de participantes na visita patrimonial andou pelas ruas da vila a cantar.

Maria Victoria Navas explicou ainda que línguas como o barranquenho, resultantes da mistura de português e espanhol, há apenas outra, na fronteira entre o Uruguai e o Brasil, que se chama precisamente fronteiriço.

Por ser uma raridade, há dois anos houve um congresso que trouxe a Portugal investigadores americanos que estão precisamente a estudar o barranquenho.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

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