Em Mértola, entre paleocristãos, mouros, canto gregoriano e um mantra hindu

Houve quem fosse a Mértola «lavar a alma»

Um concerto numa igreja católica que já foi mesquita, construída sobre um sítio paleocristão. No altar, a imagem de Nossa Senhora das Vinhas não tapa o mihrab, o oratório islâmico ali construído há uns 800 anos. Um concerto em que o contratenor, espanhol, entoou canto gregoriano a capella e terminou com um mantra hindu.

Este é bem o espelho da multiculturalidade e aconteceu no sábado passado, em Mértola, em mais uma jornada do Festival Terras sem Sombra.

O fim de semana começou a meio da tarde de sábado, com uma visita guiada pela arqueóloga Susana Gómez, do Campo Arqueológico de Mértola, que foi ajudando o grupo de perto de uma centena de pessoas a desvendar as diversas camadas de história de que se faz o passado desta vila alentejana à beira do rio Guadiana – como um palimpsesto que, geração após geração, foi sendo escrito e reescrito e que agora se desenrolava ali, para todos apreciarem.

Ao longo de cerca de três horas de deambulação pelas ruas estreitas e medievais, Susana Gómez fez questão de «transmitir-vos esta paixão que temos por Mértola».

A visita patrimonial teve início na Igreja Matriz, que é «um espaço único no país», por ter sido mesquita, da qual guarda a qibla, ou muro de orações voltado para Meca, onde se abre o mihrab, o oratório que ainda conserva «parte da decoração original do século XII», como salientou a arqueóloga. E antes, naquele local, como o comprovaram escavações arqueológicas feitas junto à antiga qibla e no adro da igreja, foi encontrada «uma grande estrutura», datada do século V ao século VIII, que poderia ter sido «um edifício do cristianismo primitivo, uma igreja paleocristã» ou até uma «primitiva mesquita».

 

Na zona das ruínas da alcáçova, o grupo viu os vestígios romanos, que mostram que já nesses tempos Mértola era uma cidade importante, um porto muito movimentado, servido por um Guadiana que era, então, uma verdadeira autoestrada líquida. E desceu ao criptopórtico, assim como ouviu com atenção as explicações sobre o bairro islâmico construído por cima, que se densificou quando, ameaçados pelos cristãos que se aproximavam, os mouros dos arrabaldes se mudaram para dentro das muralhas de Mértola.

No Castelo, logo ali acima, Susana Gómez falou das suas diversas fases de construção. Também este monumento é um intrincado de páginas da história, que se foram inscrevendo nas suas pedras, até aos dias de hoje. Em 1238, quando a vila foi conquistada pelos cristãos ao serviço do rei D. Sancho II e comandados por D. Paio Peres Correia, o castelo foi entregue à Ordem de Santiago, que fez importantes obras de melhoramento.

Dali, o grupo desceu até à Câmara Municipal, onde pôde admirar as marcas na parede, das catastróficas cheias de Dezembro de 1886, quando a água do Guadiana subiu dezenas de metros, até àquele local. Hoje, olhando o rio a correr tão calmo lá em baixo, quando a situação é de seca extrema neste canto do Alentejo, até custa a imaginar a repetição da tragédia. «Desde a construção das barragens, em especial do Alqueva, deixou de haver estas cheias repentinas e tão altas», explicou a arqueóloga.

 

E depois foi a vez de, seguindo ao longo da rua que é uma espécie de varanda sobre o Guadiana, chegar à sede do Campo Arqueológico de Mértola (CAM), onde o grupo do Festival Terras sem Sombra foi recebido pelo seu fundador, o arqueólogo e historiador Cláudio Torres.

O decano arqueólogo, que há pouco cumpriu 81 anos de idade e foi medalhado pela ministra da Cultura, lamentou os «quatro anos de travessia do deserto» que o Campo Arqueológico de Mértola viveu recentemente, por falta de financiamento, quer a nível nacional, quer da própria Câmara Municipal. «Foi um período difícil, muitos técnicos da nossa equipa foram-se embora ou tiveram de diminuir a sua colaboração, procurando trabalho noutros locais», acrescentou.

Mas essa é uma fase que, felizmente, «está agora ultrapassada», havendo de novo um relacionamento forte com a autarquia e até projetos em conjunto. «O apoio da autarquia é fundamental». Susana Gómez recordou que este ano há «quatro, cinco projetos», que o CAM promove ou nos quais participa, que garantiram financiamento de diversas fontes.

Mas falta ainda aquele «olhar sério» sobre o trabalho do CAM, que lhe garanta um financiamento constante, capaz de garantir a longevidade dos seus projetos. Isto mesmo já tinha defendido Cláudio Torres em Janeiro passado, quando a ministra da Cultura esteve em Mértola para lhe entregar a Medalha de Mérito Cultural, outorgada pelo Governo. E foi também defendido, nesse mesmo dia, pela vereadora Rosinda Pimenta. A este pedidos, a ministra Graça Fonseca respondeu…que se irá trabalhar nesse sentido.

«Mértola tem um relacionamento de milénios com o mundo mediterrânico», disse ainda Cláudio Torres, falando para uma plateia que enchia por completo a sala da biblioteca do CAM. «No Norte de África, não há nada de islâmico, porque os franceses, que lá estiveram a colonizar, queriam era o romano. Só que, para se chegar ao romano, há que apagar o que está por cima», explicou o arqueólogo, para salientar o interesse que a documentação, os livros e o trabalho do Campo Arqueológico de Mértola têm para o mundo académico, nomeadamente até para os estudantes norte africanos, nomeadamente os de Marrocos.

Em Mértola, não é só o legado islâmico, riquíssimo, que interessa ao investigador. «Aqui, pelo que escavámos e investigámos ao longo destes quarenta anos, ficámos a saber que havia antes um mundo cristão que não era o católico, era paleocristão. Era um mundo cristão muito interessante, uma igreja monofisita», de um só Deus. Isso faz com que, quando os muçulmanos chegaram a esta zona da Península não tenha havido, na opinião de Cláudio Torres, propriamente uma «conquista», mas antes uma «passagem».

Sobre o seu trabalho, iniciado há mais de quatro décadas, o arqueólogo salientou ter vindo «aqui para o Sul a tentar encontrar o Islão e encontrámos o mundo cristão».

 

Hoje, esta «terra pobre», com apenas 1100 habitantes, retira grande parte do seu rendimento do património posto a descoberto pela arqueologia e da rede de museus criada. «Há nove museus na vila e tudo isto atrai 50 mil visitantes por ano. Há aqui uma dinâmica diferente. Os turistas já cá comem, vão à restauração, mas também já cá ficam. Na vila velha, que foi abandonada pelos que cá viviam, agora vê-se outras caras, há malta jovem, portuguesa e estrangeira, que quer viver aqui»

A partir deste rico património, deste «museu natural que é a vila», Mértola precisa ainda de definir «um projeto de desenvolvimento local que motive o regresso daqueles que saíram».

E à noite chegou a vez do concerto de José Hernandez Pastor, o contratenor valenciano, que surpreendeu tudo e todos, não só pelas qualidades da sua bela voz, com um timbre sublime e uma extraordinária capacidade de afinação, mas pela deambulação que o artista fez pela igreja, tornada pequena pelas cerca de 200 pessoas que ali se deslocaram, vindas de todo o país, muitas delas de outros pontos do Alentejo ou do vizinho Algarve.

A vereadora Rosinda Pimenta, falando momentos antes do início do concerto, salientou a importância que o Terras sem Sombra tem para o seu concelho, salientando que «um evento desta natureza traz a Mértola, artistas de renome internacional e permite que a nossa população tenha acesso a este tipo de concertos, o que não seria possível se não houvesse um festival com estas características». Por outro lado, para quem veio de fora para conhecer Mértola e assistir ao concerto, também se deu a descobrir aspetos do território que nem sempre estão acessíveis.

José António Falcão, diretor geral do festival, salientou, por seu lado, que «vivemos todos a um ritmo muito acelerado», «corremos em direção a qualquer coisa e por vezes até perdemos a noção do objetivo», de uma «vida que nos esmaga, que nos deixa muito pouco tempo para nós próprios». É nesse âmbito que «o Terras sem Sombra procura, de alguma maneira, antever o futuro. E o futuro, tal como o podemos antever hoje, é um futuro em que a reflexão e a meditação vão ter um papel preponderante. É isso que neste lugar, esta noite, José Hernandez Pastor nos vai propor, uma experiência de certo modo única», num «caminho cheio de beleza, cheio de serenidade».

«O que vamos hoje aqui vivenciar não é só uma espécie de um mantra ou de uma oração. É mais do que isso, é um importante acontecimento musicológico, na medida em que é o resultado de um esforço de pesquisa». O «compositor, musicólogo e intérprete» levou a Mértola a sua «beleza da voz, subtileza de interpretação, capacidade de afinação, mas que nos interpela pela sua inquietação artística», acrescentou o diretor geral do festival.

 

Antes do concerto, em conversa com o Sul Informação, o artista espanhol já tinha levantado um pouco o véu do que iria acontecer nessa noite, dizendo que «quando se faz meditação, parece que há palavras que nos vêm de todo o lado».

E foi mesmo «nas Asas do Espírito: voz e silêncio», título do concerto, que Hernandez Pastor vogou, trajando de branco e envolto numa leve e despojada capa castanha. O canto gregoriano, em latim e a capella como tem de ser, foi entoado pela sua bela voz, na sacristia, junto à pia batismal, no púlpito, frente ao altar, deambulando pelo templo, entre o público e a floresta de colunas da igreja. Quem ali estava, assistindo em silêncio, ora voltava a cabeça para ver de onde vinha a voz, ora fechava os olhos para se entranhar naquela música.

No fim, o público irrompeu em aplausos e José Hernandez Pastor foi mesmo obrigado a um encore. E foi então que da sua garganta e peito irrompeu um mantra, certamente em sânscrito. Um momento de pura beleza, que deixou muitas pessoas do público de lágrimas nos olhos.

No dia seguinte, domingo, como é costume nos fins de semana do Terras sem Sombra, houve ainda a atividade de biodiversidade, nas hortas mediterrânicas de além-rio.

Como explicou José António Falcão, foi o «complemento lógico» de um sábado de encantamentos: «no terreno, na comunhão direta com a natureza», o grupo de participantes foi «conhecer uma experiência muito interessante, cheia de esperança, que é a agricultura sintrópica». Hernandez Pastor, que acompanhou o grupo, entoou outro mantra no seio daquela paisagem mediterrânica desesperadamente a gritar por chuva.

Que melhor «suma ou conclusão» poderia haver para esta jornada do Terras sem Sombra por terras de Mértola?

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Festival Terras sem Sombra ruma a Arraiolos

O festival continua no fim de semana de 29 de Fevereiro e 1 de Março, em Arraiolos.
A atividade de património, na tarde de sábado, a partir das 15h00, tem como tema «Entre Oriente e Ocidente: os Tapetes de Arraiolos».
Às 21h30, na Igreja do Convento de Nossa Senhora da Assunção, terá lugar o concerto denominado «Serenata às Estrelas: obras de compositoras femininas para Flauta e Piano».
Serão intérpretes a flautista checa Monika Streitová, acompanhada ao piano pela portuguesa Ana Telles.
No domingo, dia 1, às 9h30, começa a atividade dedicada à Biodiversidade. O tema é «uma dádiva do Montado: a Bolota».
Todas as atividades do Terras sem Sombra são gratuitas e não carecem de inscrição prévia.
Basta comparecer nos locais de encontro, mas horas indicadas.

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