O Amor e as metáforas

E se todos fossemos capazes de dizer metáforas uns aos outros, o amor ganhava rapidamente todas as batalhas

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Hum!… Aquele olhar que de repente se descobre e que do outro lado da sala (que até podia ser o outro lado do mundo!) nos encontra e nos percorre, como uma vaga de mar grande, um sueste intempestivo e guloso que, sem medo, derruba todas as barreiras… Aquele sorriso que parece o sol grande, alto no céu, um sol que tudo ilumina e tudo aquece…

Depois, quando a distância diminui e já estão próximos os corpos, tudo fica mais turvo, mais embaciado, marcado por uma languidez promovida pelo ar partilhado ao respirar, pelo toque que torna real este jogo, pela concretização daquele «fogo que arde sem se ver», como dizia o imortal poeta.

Vemos cenas destas, se quisermos, todos os dias. Acontecem ao nosso lado, em qualquer emprego, num café que se partilha a meio da manhã, numa pausa de trabalho, num copo tomado com amigos, num banal passeio a pé. Há casais que se enamoram perdidamente, que se enamoram todos os dias e sentem que nada nas suas vidas faz sentido sem o outro, a metade de si mesmos, como dizia Platão, na sua obra “O Banquete”.

Pela boca de Aristófanes, o filósofo descreve os seres primordiais como circulares, com uma só cabeça, mas tendo dois rostos opostos e andando eretos ou cambalhotando. Alguns eram do sexo masculino nas suas duas metades; outros apenas do sexo feminino; e haveria uma terceira forma, que unia uma metade feminina e outra masculina. Tendo desafiado os Deuses, acabariam por ser separados em dois, errando perdidos, em busca da metade que os completaria.

Continua essa busca. Hoje, sempre. Os nossos caminhos em torno do amor levam-nos, todavia, por ruas tantas vezes escuras e cheias de más surpresas.

O que inicialmente é maravilhoso e nos desperta todos os sentidos; o que nos parece perfeito e irrepreensível acaba por transformar-se em histórias de humilhação, de violação, de violência. E os sinais, se calhar, estiveram sempre lá, mas não os vimos, inebriados como estávamos pelos sinais da paixão e pelo empenho em ver no outro o tal ser que nos completaria.

Somos um país de apaixonados, mas também um país, onde muitos não sabem viver o amor. Os registos das mortes por violência doméstica do último ano deveriam obrigar-nos coletivamente a refletir sobre estas questões e a tentar perceber que tipo de construções estamos a fazer sobre a ideia do amor, construções essas que vamos transmitindo, pela experiência direta ou não, às gerações futuras.

Já não estamos num tempo em que as mulheres – principais vítimas de violência por parte dos seus maridos/companheiros – devessem ter de suportar tudo por não conseguirem subsistir sozinhas; já não estamos num tempo em que as vítimas deste tipo de agressão – mulheres, homens ou crianças – não devessem ter, por direito próprio, ajuda de todos nós através das instituições do Estado, pois pagamos impostos; já não estamos num tempo em que, socialmente, seja inaceitável o afastamento daqueles que não vivem mais uma relação de verdadeiro amor.

Porquê, então? Porque continuamos a ver capas de jornais com notícias de agressões e mortes? Por que motivo achamos que temos efetivamente de suportar tudo quando amamos, ou de tudo exigir, quando somos amados? Como é possível que vejamos isso em gente extremamente jovem, nas nossas escolas?

Se calhar perdemos as verdadeiras metáforas que estão associadas ao amor e reduzimos tudo ao óbvio, ao fácil, ao rápido. Perdemos o encanto suave da descoberta e passamos muito depressa à fúria da paixão consumada.

Possivelmente não conseguimos entender que, mesmo a nossa outra metade, não é uma cópia de nós e que, por isso, tem de ter espaço para a sua diferença, liberdade para nos amar de acordo com as suas características e vice-versa, uma vez que esse também é um direito nosso. Quiçá estamos a olhar mais para o nosso interior, do que para aquele por quem nos enamoramos… E não olhamos na mesma direção…

Também dizia Camões (no soneto “Quem diz que Amor é falso ou enganoso”): «Se males faz Amor, em mim se veem». Se males faz amor, sofrem os que se amam. E isso é triste, porque amar deveria ser só poesia. E quem se ama deveria ser capaz de dizer metáforas, metáforas sentidas daquilo que o coração vive, mas que, não tendo voz, não pode comunicar.

E tudo seria mais belo, porque o amor tem o Bem e o Belo como fins últimos, como companheiros de jornada e é por isso que nos faz felizes, que nos faz sorrir, que nos faz sentir vivos e capazes de partilhar até ao limite – mesmo quando a vida nos dói por todos os lados e nos apetece desistir – do que temos de melhor dentro de nós mesmos.

E se todos fossemos capazes de dizer metáforas uns aos outros, o amor ganhava rapidamente todas as batalhas e como seria bonito escutar todos os dias, como no filme “O Carteiro de Pablo Neruda”/Il Postino: «O teu sorriso espalha-se como uma borboleta sobre o teu rosto. O teu sorriso é como uma rosa, uma lança descoberta, o bater das águas. O teu sorriso é uma onda prateada repentina».

Todos sorriríamos, porque dentro do coração, as metáforas estariam a fazer o seu trabalho.

 

Autora: Sandra Côrtes Moreira
É licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Universidades de Lisboa e Algarve e mestre em “La Educación en la Sociedad Multicultural” pela Universidad de Huelva.
Desempenha as funções de coordenadora do Gabinete de Informação e Relações Públicas da Câmara Municipal de Silves e é assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, com quem colabora, integrando também a equipa da Pastoral do Turismo.

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