Discutindo barragens à volta de um cocharro de água

«Só a mudança de paradigma e atitude perante a água, em todos os domínios, permitirá aumentar as margens de segurança na utilização dos recursos»

Barragem do Beliche quase sem água, esta semana – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

O tema da água no Algarve parece ter conquistado o seu espaço de discussão na praça pública, para lá das chuvadas que, em meados de Dezembro de 2019, vieram aliviar, ainda que ligeiramente, a seca regional e a escassez ao nível das reservas superficiais.

A mais recente e relevante prova é a entrevista dada ao Sul Informação pelo presidente da AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve, em que abordou, de forma abrangente, a problemática da água, de resto dando continuidade à atenção que esta entidade tem dedicado aos recursos hídricos, promovendo mesmo, e de forma recorrente, encontros regionais com Ministros responsáveis por tutelas particularmente relevantes, como é o caso do Ambiente e da Agricultura.

No entanto, se dessa entrevista resulta a leitura de que a AMAL está consciente para a profundidade do tema, e para a necessidade de uma abordagem integrada às soluções que permitam uma melhor gestão do mesmo, algumas das conclusões apresentadas, relativamente às opções tomadas, suscitam reservas.

Concretamente, o facto de a AMAL já ter aparentemente decidido que a construção de uma barragem na bacia hidrográfica da Ribeira da Foupana é o novo desígnio regional, pelo qual se irá bater junto do Governo – ainda que o mesmo tenha recusado liminarmente tal intenção em 2018.

Esta declaração de interesses surge como corolário de uma agitação que de há algum tempo a esta parte se vinha sentindo em certos sectores regionais, pressionando as entidades públicas no sentido de criar mais uma infra-estrutura desta natureza, independentemente de quaisquer estudos ou conclusões.

Por outro lado, a sociedade civil tem vindo a cada vez mais exigir maior rigor no modelo de exploração da água, e nos próprios usos autorizados para essa mesma água, de forma a interromper os padrões de elevado desperdício que, paradoxalmente, marcam os recursos hídricos no Algarve.

Com esta sua tomada de posição, a AMAL gera polarização.

As barragens, sendo infra-estruturas pesadas, onerosas e ambientalmente impactantes, não apenas na linha de água ou bacia hidrográfica onde se implantam, mas muito para além disso, geram sempre grande discussão relativamente ao produto da ponderação entre as suas vantagens e desvantagens. A única forma de pacificação desse confronto – por vezes fracturante – de argumentos, é o seu enquadramento (ou não) num modelo integrado de gestão da água, em que se pode justificar (ou não) e tornar útil e relevante (ou não) um tão grande investimento ambiental e financeiro.

No caso em apreço, isso permanece por provar (recorde-se que Odelouca iniciou a exploração há apenas 10 anos, quando vinha acompanhada da promessa de sanar o défice hídrico da região).

O próprio Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve, no que diz respeito ao que designa como “Caminhos de adaptação para a disponibilidade hídrica”, e no contexto de uma avaliação multicritério das medidas e acções propostas no âmbito dos recursos hídricos, não elege a barragem como via a seguir, optando inequivocamente pelo melhoramento das actuais políticas (gestão de redes incluídas) e reutilização de águas.

De resto, na comparação entre o investimento numa barragem ou remodelação de infra-estruturas de rega, de sistemas urbanos de abastecimento de água ou diminuição de necessidades de água nos espaços verdes urbanos, considera que a primeira representa um investimento muitíssimo maior (construção e manutenção), para resultados mais tardios, e com externalidades negativas associadas.

Portanto, ao afirmar-se a barragem como um fim para o qual se irão encontrar os necessários meios que o justifiquem, inverte-se até a lógica do principal instrumento de orientação nesta matéria. Deixamos então de estar focados, e debater, a gestão da água enquanto recurso vital num modelo integrado, e passamos a estritamente discutir uma obra pública, que ainda para mais mantém a água numa lógica de mero consumível, sob a desastrosa ideia de que a disponibilidade é limitada apenas pela nossa vontade. Ou seja, o instrumento torna-se fim em si mesmo, e negligencia o seu objectivo mais amplo, que devia servir.

O problema da acessibilidade e utilização racional dos recursos hídricos no Algarve é complexo, e carece de soluções a vários níveis. Não apenas em termos do consumo humano, mas das funções ecológicas da água na paisagem que, uma vez falidas, originam o avanço de processos de desertificação, por quebra da capacidade de suporte de vida por parte do próprio solo.

Só a mudança de paradigma e atitude perante a água, em todos os domínios, permitirá aumentar as margens de segurança na utilização dos recursos (desde os hídricos ao próprio território), de modo a fazer face à ampliação do grau de incerteza causado pelo presente ciclo de alterações climáticas, que acresce àquele que era já intrínseco ao Algarve, por força do seu enquadramento climático.

Este tema é demasiado grave para que se perca tempo e energia a cavar trincheiras.

Não só por uma questão ambiental, mas até democrática, principalmente num momento em que tanto se discute a descentralização e a regionalização como forma de aproximação da decisão às populações, especificamente através dos níveis regionais.

A história recente do nosso País mostra como o erário público tem sido pasto e presa fácil para oligarquias que decidem em circuito fechado o embarque em sucessivos investimentos cuja viabilidade – veja-se o caso de outro recente consenso forçado, o do aeroporto no Montijo – e vantagem colectiva a longo-prazo é dúbia e nunca discutida com a população, a quem depois compete, enquanto amálgama contribuinte, e ao longo de várias gerações, gerar a receita fiscal que alimenta tão voraz apetite e respectivos encargos, em particular as dívidas.

Quase meio século de democracia não conseguiu gerar dinâmicas de cidadania fortes o suficiente para interromper ou controlar tão vicioso ciclo que, além de comprometer financeira e paisagisticamente gerações actuais e futuras, mina o mais básico alicerce que deve existir entre cidadãos, processos e instituições: a confiança.

Não tenho dúvidas que a AMAL, enquanto estrutura de proximidade que é, não quer engrossar esse rol, até porque aquilo que a move é a vontade de resolver o problema estrutural da falta de água e atender às necessidades da região. Mas, para tal, deve reconsiderar esta sua decisão em formato de facto consumado, aproximando-se à sociedade civil, para uma discussão mais aberta.

Acima de tudo, para que nenhum cidadão, em qualquer momento de diálogo com as suas instituições, como por exemplo numa protocolar “participação pública”, tenha o seu espírito dominado pela ideia de que se vai inapelavelmente inscrever num consenso de que não participou, relativamente a um avanço com o qual nunca concordou.

Beba-se um cocharro de água, enquanto se fala nisso.

 

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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