Cláudio Torres: «Oxalá» Mértola consiga apoio para manter vivo o seu território

A investigação do arqueólogo e historiador «dá-nos a história que nós não conhecemos», defendeu a ministra da Cultura

«Oxalá a gente consiga organizar aqui, em continuidade, um centro de investigação, que possa abrir, para o futuro, novas perspetivas, novas formas de investigar e de trabalhar, que possa desenvolver esta zona de uma forma mais coerente». Foi desta forma, pouco centrada em si e sobretudo voltada para Mértola e o seu Campo Arqueológico, do qual foi fundador, que Cláudio Torres terminou o seu discurso, este sábado, naquela vila alentejana, na cerimónia que encerrou com a ministra da Cultura a entregar-lhe a Medalha de Mérito Cultural, outorgada pelo Governo ao arqueólogo.

A cerimónia, na qual participaram largas dezenas de amigos de Cláudio Torres, tornando muito exíguas as instalações da sede do Campo Arqueológico de Mértola, contou com momentos de emoção, que culminaram com uma curta atuação dos «Cantores do Alentejo», grupo no qual uma das vozes principais é a de Jorge Benvinda, dos Virgem Suta. E o cante, também ele património, saudou o decano arqueólogo e historiador dando-lhe os parabéns, já que Cláudio Torres fez ontem, 11 de Janeiro, 81 anos de uma vida repleta.

Ana Paula Amendoeira, diretora regional de Cultura do Alentejo, começou com uma brincadeira a sua intervenção, ao saudar Manuela, mulher de Cláudio, que estava sentada na primeira fila, dizendo que «atrás de uma grande mulher está sempre um grande homem». Perante a gargalhada geral, Manuela, sempre serena, respondeu: «pode ser ao lado», uma grande mulher ao lado de um grande homem.

A diretora regional falaria depois da Medalha de Mérito que considerou «um reconhecimento ao percurso do Cláudio, mas também para todos aqueles que normalmente não escrevem a história. Foram eles que sempre estiveram na base das preocupações do Cláudio. Tem sido isso que ele sempre nos tem ensinado: ir atrás daqueles que não escrevem a história. Usando a metáfora do poema de Brecht, não foram os reis que construíram Tebas, foram os outros, os que não escrevem a história».

Cláudio Torres, recordou Ana Paula Amendoeira, «voltou para Portugal, a seguir ao 25 de Abril, para provar que era – e é! – possível construir projetos de desenvolvimento em Portugal, baseados na cultura, no património, na identidade, no devolver da autoestima às pessoas».

 

A ministra Graça Fonseca, com Cláudio Torres, o homenageado

Graça Fonseca, a ministra da Cultura que o homenageado considerou ser «simpática», ao contrário de outros seus antecessores, arrancando uma gargalhada geral e um sorriso meio embaraçado da governante, fez também questão de sublinhar o legado de Cláudio Torres.

O Campo Arqueológico de Mértola, ele próprio medalha de Mérito Cultural em 1998, «é a imagem feita em instituição e o legado de Cláudio Torres, um exemplo de preservação do património arqueológico desta vila, da rica narrativa de tempos que ele manifesta», disse.

Trata-se de um trabalho que, «através da cultura e do património aqui existentes, da sua salvaguarda e estudo, e de um projeto inovador e multidisciplinar, tem contribuído de forma indelével para a valorização da população de Mértola, transformando esta terra num destino obrigatório parta os que se interessam pela cultura mediterrânica», acrescentou.

Graça Fonseca, que falou do «efeito quase milagroso de quem à história, à museologia e à arqueologia dedicou uma vida», sublinhou o facto de a obra de Cláudio Torres mostrar «que o património cultural é de todos nós, sobrevive e sobreviverá, como prova e como afirmação, contra o apagamento próprio do passar do tempo, um testemunho de humanidade».

Mas não se julgue que, com tanto natural e merecido elogio, Cláudio Torres deixou de pôr o dedo na principal ferida do território de Mértola: «desta terra continua a sair gente, estamos hoje com pouco mais de 1000 habitantes. É certo que começa muita gente a vir e os tais mil habitantes são visitados, espantosamente, por 50 ou 60 mil turistas ao ano. Temos aqui um turismo cultural disperso mas fundamental para este ser um polo agregador. É raro haver um local só com mil habitantes e tanto visitantes».

 

Vereadora Rosinda Pimenta, responsável pela Cultura na Câmara de Mértola

Para que o Campo Arqueológico de Mértola se mantenha como «polo catalizador» é preciso investimento e apoio. Foi isso mesmo que defendeu Rosinda Pimenta, vereadora da Cultura da Câmara de Mértola.

O Campo Arqueológico é um «centro de investigação científica de excelência, com uma particularidade: vinga num território de interior, despovoado e de periferia e persiste nessa excelência de forma estóica contra as adversidades da falta e/ou intermitência de financiamento», disse.

E os votos da vereadora foram para que «este reconhecimento, atribuído agora a Cláudio Torres, seja, pelas diferentes entidades de tutela, da Cultura e da Ciência, acompanhado da necessária catalização de recursos para o Campo, que possibilitem a tranquilidade da sustentabilidade, a continuidade e a abertura de novas linhas de investigação».

Fazendo eco do que pouco antes dissera a vereadora Rosinda Pimenta, o homenageado fez questão de afirmar que espera que «esta ministra e este Governo possam apoiar e compreender este polo agregador de um interior despovoado, que talvez sirva, para, no futuro, mostrar alguns exemplos interessantes».

A equipa do Campo Arqueológico de Mértola, recordou o seu fundador, chegou a ser «muito grande», mas, «entretanto, por razões várias», nomeadamente «por falta de apoios locais«, alguns dos seus elementos foram embora. É que, salientou Cláudio Torres, «não é fácil» para uma «pequena Câmara», como a de Mértola, «aguentar uma equipa complexa de muita gente».

«Não é fácil, tem de haver uma cumplicidade nacional e eu espero que isso venha a acontecer um dia, ainda não aconteceu de uma forma evidente, mas vai acontecer um dia, tenho a certeza», disse. O Campo Arqueológico tem «muita gente solidamente formada» e que «pode servir de alicerce e de cimento para um futuro talvez ainda mais interessante».

Perante todos estes recados, já depois da cerimónia, a ministra Graça Fonseca, em entrevista aos jornalistas, admitiu não ter levado nenhum presente para o aniversariante. «Hoje quis vir aqui porque o Cláudio faz anos. A seguir, está já está combinado, farei uma visita com mais tempo e mais calma».

É que, disse a ministra, apoiar o trabalho em Mértola «não é só uma questão de dinheiro, embora obviamente também seja. Há aqui de ligação entre a cultura e a ciência», sendo preciso «trazer para este trabalho mais a ciência». «É exatamente nesse sentido que iremos trabalhar», anunciou Graça Fonseca.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Intervenção integral de Cláudio Torres na cerimónia:

«Foram bonitas as palavras e espero que sirvam também à nossa terra, que esta saiba aproveitar, saiba criar para o futuro novos patamares e abra novas portas e também alguns postigos mais.

É fundamental este gesto desta ministra, que é uma ministra simpática [risos], não é todos os dias.

Esta história do Campo Arqueológico de Mértola já tem barbas brancas, quarenta e poucos anos. Foi importante, obviamente para mim, foi um esvaziamento de muitos anos de outras experiências, foi uma construção localizando toda uma série de outras experiências diferentes. Contei aqui com muita gente interessantíssima. Oxalá isto tenha continuidade, tenha formas de ser apoiado como deve ser e como precisa.

Esta é uma zona muito grande do país, que é exemplo do despovoamento,da desertificação, fora dos circuitos,. Talvez isto sirva, no futuro, para criar aqui um polo agregador, um polo que chame, que fixe nova juventude que possa vir para o interior. Porque são zonas excecionais do ponto de vista histórico e identitário, coisas com as quais a nossa juventude apenas tem contacto distante.

Esta experiência aqui foi fundamental para mim e para centenas de jovens que aqui andaram a trabalhar, com todo o seu entusiasmo. Há aqui uma imensíssima coisa que foi criada nessa altura, como a ADPM [Associação de Defesa do Património de Mértola], que é a outra associação além do Campo Arqueológico, que está hoje a trabalhar a espalhar, agora apoiando-se em Cabo Verde e em Moçambique. Temos hoje aqui muita gente solidamente formada e estruturalmente bem organizada, que pode servir de alicerce e de cimento para um futuro talvez ainda mais interessante.

Oxalá que assim seja e que esta ministra e este Governo possam apoiar e compreender este polo agregador de um interior despovoado, que talvez sirva, para, no futuro, mostrar alguns exemplos interessantes.

Desta terra continua gente a sair, estamos hoje com pouco mais de 1000 habitantes. É certo que começa muita gente a vir e os tais mil habitantes são visitados, espantosamente, por 50 ou 60 mil turistas ao ano. Temos aqui um turismo cultural disperso mas fundamental para este ser um polo agregador. É raro haver um local só com mil habitantes e tanto visitantes.

Ainda por cima é um setor que se está a organizar a si próprio, não tem circuitos fixos e rígidos, aquela massa que vem divide-se pelas ruas, visita os museus, que são bastantes, é certo, são cerca de uma dezena aqui na vila. E isso também foi um polo importante para atrair esta multidão. São multidões que ainda não têm como gastar aqui, como ficar mais tempo aqui. A nossa terra tem, talvez, de aprender como fazê-los ficar aqui mais tempo.

Hoje este é um projeto que tem já os pés consolidados. No Campo Arqueológico, temos aqui cerca de 30 mil volumes, que são talvez a mais importante biblioteca especializada nesta matéria, dos séculos mediterrânicos, do V ao VIII, X, XII. É um período ainda mal estudado, mas que pode ser muito importante. Esta biblioteca pode atrair mais estudantes, mais gente, mais investigadores que possam vir aqui trabalhar connosco, consultar, publicar. São aspetos que talvez comecem a ser compreendidos, organizados de uma forma diferente para o nosso futuro.

É um período muito importante da nossa história que marca identidades, e que ainda está mal estudado, muito escondido, está sujo de várias ideologias que o têm pintado de negro, e é difícil limpar, lavar, varrer tudo isso que ficou acumulado, desde o fascismo até hoje.

Oxalá a gente consiga organizar aqui, em continuidade, um centro de investigação, que possa abrir para o futuro, novas perspetivas, novas formas de investigar e de trabalhar, que possa desenvolver esta zona de uma forma mais coerente».

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