O Festival Terras Sem Sombra, uma poética alentejana

O Festival Terras Sem Sombras é uma verdadeira revelação, uma porta aberta para o mundo

Festival Terras sem Sombra com os pastores transumantes na planície de Beja – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Na era dos signos e dos símbolos, o tema dos “sinais distintivos” como emblema ou distinção de um território tem sido aqui por mim referido com alguma frequência. Hoje, trago um exemplo por demais eloquente, o Festival Terras Sem Sombra (TSS), nascido em 2003 no Baixo Alentejo e exemplarmente dirigido pelo Historiador de Arte José António Falcão.

No início, era só a música. Foi esta a linguagem universal escolhida pela equipa do Terras Sem Sombra. O Festival nasceu em 2003, no Baixo Alentejo.

Com o passar do tempo, o festival e a sua itinerância foram-se alargando aos restantes “Alentejos” e este ano chegou, também, à Estremadura espanhola.

Pelo caminho, a polifonia foi-se diversificando e complexificando. Em primeiro lugar, a música, depois a proteção da biodiversidade e, agora, também, o património cultural. Com o tempo, o Festival tornou-se uma referência e uma espécie de embaixador das “essências do Alentejo”.

Este ano, o Festival teve um país convidado, os EUA, e, logo no início da temporada, uma delegação do Alentejo visitou os EUA. A edição de 2019 terminou no final de junho e o balanço é deveras significativo: mais de 20 “etapas”, cerca de 15 mil visitantes e uma rede de 200 voluntários espalhados pelos vários recantos do Festival.

Os números são úteis, mas, no final, há um traço que sobressai, sintetiza José António Falcão: “o caráter genuíno que privilegia uma ligação direta às pessoas”. Ouçamos, então, José António Falcão numa entrevista recente ao Diário de Notícias.

“O TSS surgiu para responder a um desafio que era então enfrentado no Baixo Alentejo. Tinham sido recuperados muitos monumentos, principalmente religiosos, mas havia um grande desconhecimento, talvez pelo facto desse património estar, de alguma maneira, fechado. Na altura, eu era responsável pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e tentámos encontrar várias soluções para devolver à vida estes monumentos: visitas guiadas, exposições temporárias, conferências. Voltava a haver fluxo de atividade durante um dia, mas depois era extremamente difícil mantê-lo. Até que o professor António Lamas nos convenceu de que só a música iria trazer as pessoas de volta. E de facto isso aconteceu. Desde o primeiro momento que o TSS tem tido casa cheia. Consideramos que a música sacra, espiritual, é fundamental e que corresponde muito à matriz da região. No Alentejo tivemos uma vantagem, a grande paixão que as pessoas têm pela música. Independente de estarmos a escutar música minimalista ou canto gregoriano, escutam-na com igual respeito”.

“A seguir à música, veio a salvaguarda da biodiversidade, a mãe natureza e, mais recentemente, decidimos integrar também o património cultural. Começámos então as atividades em cada terra percorrendo um tópico do seu património cultural, material ou imaterial. Por exemplo, na Vidigueira ocupámo-nos do fabrico tradicional do pão. Já o fizemos também com o cante e com outras realidades desta índole”.

“Em abril de 2017, foi extinto o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja que criou este festival. A partir desse momento, o festival teve mais dificuldade em existir no território que integra a diocese de Beja. Nas outras regiões do Alentejo e mesmo da Extremadura [Espanha], nunca sentimos dificuldades. Tanto este ano como no ano passado, estivemos em Beja, mas os concertos decorreram no convento de S. Francisco, que é um edifício pertencente ao Estado e que é uma pousada”.

Existe claramente um público já fidelizado e, depois, os públicos que só estão interessados especificamente naquela atividade ou concerto. A nossa ideia é que as pessoas descubram um outro Alentejo e isso tem reflexos evidentes para as comunidades locais. Há as dormidas e a alimentação, o que sobretudo em pequenas comunidades, em temporada baixa, tem um grande impacto na economia local. Há pessoas da hotelaria e restauração que nos dizem que, quando nós vamos, eles já salvaram o mês. Há um segundo reflexo que é o contributo para a autoestima e o reconhecimento da identidade local”.

Numa região onde não existiam hábitos culturais enraizados no acesso à música erudita as entradas são gratuitas. 60% do nosso público vem da própria região, são eles o nosso público alvo principal. Não sei se todos temos consciência, mas para muitas pessoas que sobrevivem com reformas e salários mínimos – o que acontece amiúde nos territórios de baixa densidade – despender 10 ou 15 euros num concerto é um luxo quase impossível”.

“Por outro lado, um festival não pode ser apenas uma bela série de bons concertos. Há momentos de fruição e outros que vão além disso e que pedem alguma literacia musical. Essa é uma preocupação da qual não abdicamos, e a figura do país convidado aí presta-se muito bem porque nos permite conhecer melhor a história da música e os melhores intérpretes desse país. Em contrapartida, procuramos levar connosco o cante alentejano e outros aspetos característicos da nossa própria cultura quando visitamos esses países. Temos tido um orgulho enorme com o cante, mas há outras manifestações que merecem a nossa atenção como as saias do Alto Alentejo, ou, por exemplo, já perto do Rio Tejo, a utilização das pedras para produzir música. Temos, também, aproveitado isto para levar comitivas bem organizadas de autarcas, responsáveis de empresas públicas e privadas, jornalistas e artistas”.

“Um valor essencial é a ligação à terra e à natureza, à família, um sentimento de solidariedade e respeito humano, e ainda uma noção, por vezes um pouco difusa, mas muito presente em toda a paisagem, que é a relação com a espiritualidade. Fico arrepiado quando me dizem que os alentejanos são pouco religiosos, quem diz isso é porque não conhece verdadeiramente o povo da região. Existe uma espiritualidade natural que parece brotar das próprias pedras e que leva a que as pessoas realmente sejam muito sensíveis a determinados valores. Não é por acaso que há grandes escritores no Alentejo, grandes músicos e criadores”.

“A viagem aos EUA, este ano, foi muito marcante (já fomos ao Brasil, a Espanha e à Hungria). Foi fácil estabelecer pontes e essas pontes não dizem apenas respeito à vida artística ou a conservação da natureza. Penso que se estabeleceram contactos para outras perspetivas como a agroindústria do Alentejo. Depois houve momentos absolutamente emocionantes, como ouvir o cante alentejano no clube português de Manassas (Virgínia), onde num auditório bastante nutrido não haveria muitos alentejanos. Depois foi absolutamente extraordinário o concerto no Kennedy Centre, que é o grande palco do mundo, não só pelas pessoas que ali estavam, e a sala estava repleta, mas, também, pelo facto de terem um canal de televisão que emite para todo o globo. Aquele espetáculo em concreto foi visto por mais de três milhões de pessoas. E houve um genuíno entusiasmo pela população de Washington que foi ao Kennedy Centre. O embaixador de Portugal lançou o desafio de organizarmos um workshop de cante que foi frequentado por várias dezenas de pessoas, entre cantores profissionais e simples curiosos. E isto mostra-nos a importância que as nossas tradições têm quando são partilhadas”.

“Há aqui uma energia que flui e que corresponde ao aspeto mágico da arte. A arte, e particularmente a música, congrega as pessoas, faz-nos sorrir, faz-nos ultrapassar as dificuldades do quotidiano, que às vezes é frio, ou monótono, ou mesmo feio. A arte, no fundo, transforma o mundo. Isto é válido, mas só acaba por chegar às pessoas quando elas próprias são protagonistas. Isso aconteceu por exemplo em Ferreira do Alentejo, onde o TSS se fundiu, num casamento muito feliz, com um pequeno festival local vocacionado para a juventude. Nós, portugueses, que durante muitos anos fomos habituados a cultivar a sua pequena quinta, a sua capelinha, mudamos muito quando mudamos de atitude”.

“Quem frequenta o meio artístico nacional e se desloca aos principais teatros e auditórios verifica que há um claro envelhecimento do público. Isto nota-se sobretudo nos grandes centros e não é uma realidade apenas portuguesa. O TSS integra a EFA – Associação dos Festivais Europeus – e todos os interlocutores partilharam esta facto preocupante. Parece que este desfasamento virá a comprometer a médio prazo o acesso aos resultados da criação artística. Temos de conseguir lutar contra este moinho de vento. Nos próximos dois anos o nosso trabalho será com as crianças, os jovens e as famílias. Vamos procurar fazê-lo de uma forma inteligente”.

As palavras avisadas do diretor do Festival Terras sem Sombra falam por si, mas, para o provar, eu gostaria de chamar a atenção dos leitores para as sessões da programação deste ano, entre Janeiro e Junho, que são verdadeiramente eloquentes e plenas de significado, uma autêntica poética alentejana, a acreditar na elegância das suas propostas, senão vejamos:

1) Programação musical

– Serpa, O voo do pássaro: aves e biodiversidade no repertório do piano, do barroco ao presente.
– Monsaraz, A ordem natural das coisas: música espanhola e portuguesa do final do século XIX.
– Valencia de Alcântara: A navegação é necessária: Charles Ives, João B. Soeiro e W. Mozart.
– Olivença: Uma viagem imaginada: suites francesas para viola de gamba.
– Beja, Rotas vitais: trios de Pierre Jalbert e Franz Schubert.
– Elvas, Antonio de Cabezón: Itinerários pela Europa ao serviço do Rei
– Cuba, Coração viajante: canções de amor e calma no Oriente e no Ocidente
– Ferreira do Alentejo, Música como passaporte: um itinerário Magyar.
– São Martinho das Amoreiras (Odemira): Em outras margens, obras americanas e europeias para flauta.
– Ravinas, Convite para a viagem: Espaços, Memórias e Tempos de Canto Lírico
– Santiago do Cacém: Onde fica a minha casa? Tradição e vanguarda na música checa, (séculos XIX e XX).
– Sines: Longe, mas perto: identidades musicais contemporâneas nos EUA.

2) Programação cultural

– Vidigueira: Conhecer o ciclo do pão: teoria, poesia e prática.
– Serpa, Oficina de Cante: ao encontro da tradição musical alentejana.
– Reguengos de Monsaraz, O Bom e o Mau Juiz: alegorias de justiça na audiência de Monsaraz.
– Valencia de Alcântara, Pedras falantes: Paisagens megalíticas da região de Alcântara.
– Olivenza, Do passado para o futuro: as raízes portuguesas de Olivenza.
– Beja, A Cidade da Água: chafarizes, fontes e poços históricos de Beja.
– Elvas, Confluências Raianas: Arte Popular e Arte Contemporânea em Elvas.
– Cuba: No país de Fialho de Almeida: Lugares e memórias do autor de ‘Os Gatos’.
– Ferreira do Alentejo, Património Histórico: A aldeia do Monte da Chaminé e a romanização do Baixo Alentejo.
– São Martinho das Amoreiras (Odemira), A Montanha Mágica: História e Histórias de São Martinho das Amoreiras.
– Ravinas: Lendo o céu e suas tradições: da astrologia à astrofísica.
– Santiago do Cacém, Tribunal na aldeia: El Palacio de la Carrera.
– Sines: No olho do ciclope: o farol do Cabo de Sines.

3) Programação sobre biodiversidade

– Vidigueira: Quando os peixes apanham o elevador, a conectividade do Rio Guadiana.
– Serpa, Banco de genes: as raças autóctones e o genoma do sobreiro
– Reguengos de Monsaraz, Interpretação da paisagem: Reguengos y su “hinterland”.
– Valencia de Alcântara, As águas do Tejo internacional: avifauna e biodiversidade.
– Olivenza, Jardins de Deus: a cordilheira de Alor e o prado.
– Beja, A rota dos pastores: os canyons reais em Beja.
– Elvas, Resistindo ao invasor: o Jacinto de Água e a Bacia do Guadiana.
– Cuba, Tesouros da Terra: geologia e variedades tradicionais.
– Ferreira do Alentejo, Vizinhos discretos: insetos e sustentabilidade nos campos.
– São Martinho das Amoreiras (Odemira), Mãe de Água: Expedição à Serra da Vigia.
– Ravinas, All for One: prevenção e combate a incêndios em La Raya.
– Ermidas do Sado, Mansa comum: o curso médio do rio Sado.
– Sines, Nereo e Proteus: observando e cultivando o mar.

 

Nota Final

Eu, que sou alentejano e do Baixo Alentejo, uma sub-região que conheço bem, sinto esta programação a três dimensões como um abraço apertado de comunhão a todos os alentejanos, como uma viagem ao centro do mundo, ao coração do Alentejo mais profundo, lá onde as sombras e as luzes se confundem.

O Festival Terras Sem Sombras é, sem dúvida, uma verdadeira revelação, uma porta aberta para o mundo. Nestas terras de horizonte largo e melancolia bem peculiar, veio, entretanto, instalar-se um visitante perturbador, a mudança climática e, agora, a emergência climática.

Nos anos mais próximos, será muito curioso observar como o Festival TSS irá responder a esta emergência e como irá ela coabitar com a nossa tradicional melancolia, feita de ironia mansa, do cante das planícies e de uma espiritualidade quase religiosa.

Estará a poética alentejana ameaçada pela emergência climática? Se, no Alentejo, a lentidão é cultura, quase apetece dizer, “num mundo fast, venha ao Alentejo celebrar a cultura slow”.

 

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas.

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