Mértola: «mamarracho» transforma-se na Estação Biológica de «nível internacional»

Projeto extravasa as fronteiras de Mértola e tem importância regional e nacional

Os antigos silos e armazéns da EPAC, em Mértola, conhecidos localmente como «o mamarracho de além-rio», vão ser alvo de requalificação e adaptação a novas funções. A principal é a instalação da Estação Biológica de Mértola, um projeto «ambicioso» e que extravasa, em muito, as fronteiras do concelho. Mas ali será criada também a Galeria da Biodiversidade/Centro de Interpretação do Vale do Guadiana, e instaladas as reservas do Museu e o Arquivo Municipal.

O projeto, que representa, só para a fase de restauro e adaptação dos edifícios, um investimento de 2,6 milhões de euros financiados pelo programa Alentejo 2020, foi apresentado esta sexta-feira, dia 13 de Dezembro, em Mértola, precisamente numa das salas dos antigos silos, apinhada de gente.

Jorge Rosa, presidente da Câmara de Mértola, salientou que este é um projeto em que se anda a trabalhar há «uns seis ou sete anos» e que está agora a começar a concretizar-se, apesar de algumas contrariedades.

O autarca recordou, para começar, a dificuldade que foi comprar os edifícios, que eram do Estado e estavam sem utilização há longos anos. Ao abrigo da lei, podiam ter sido cedidos à Câmara, sem mais delongas. Mas , «não sei como, a carta que enviámos a mostrar interesse foi parar à Direção Geral do Tesouro, que disse que os edifícios iam para hasta pública. E foi em hasta pública que os comprámos».

 

A Estação Biológica de Mértola, que incluirá espaços de trabalho, laboratórios e alojamento para investigadores residentes e visitantes, bem como para estudantes, será importante «não só pelo que vai aportar» ao concelho, mas pelas «dezenas de investigadores que irão trabalhar aqui e a partir de Mértola».

Num território periférico e em acentuada desertificação humana como este, o presidente da Câmara chamou a atenção para a importância de «cativar e trazer mais gente», sobretudo «residentes especializados». «Este é um território de baixa densidade, mas tem muitos trunfos», assegurou.

Sendo este «um projeto de grandes dimensões e ambição», Jorge Rosa admitiu que apenas será concretizado «no próximo mandato autárquico».

Mais tarde, em entrevista ao Sul Informação, o autarca mertolense explicou que, depois de o gabinete de arquitetos responsável pelo projeto de requalificação dos edifícios ter sido escolhido e já ter apresentado o seu trabalho, segue-se a fase de elaboração dos projetos de especialidade. Depois haverá o concurso para a obra e a intervenção em si. Mais tarde, avançará a musealização, para a qual há já uma nova candidatura a fundos europeus apresentada. Ou seja, acredita, lá para 2023 deverá estar a ser inaugurada a Estação Biológica de Mértola e os equipamentos que a compõem.

Jorge Rosa, que é autarca eleito pelo PS e também o presidente da Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo, não teve dúvidas em afirmar que este é «um projeto de dimensão regional e mesmo nacional».

Apesar disso, lamentou, «temos zero governantes aqui presentes. Mas teria sido importante, para conhecerem este projeto e todo o trabalho feito». Tendo a questão da hasta pública como pano de fundo, o edil sublinhou: «começámos este caminho sem os governantes, hoje fizemos esta sessão sem eles. Esperemos que noutra fase mais avançada cá estejam».

Mais direto seria, pouco depois, Jorge Pulido Valente, vice presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo e antigo presidente das Câmaras de Mértola e Beja. Anunciando uma «notazinha politicamente incorreta» antes de iniciar o seu discurso, Pulido Valente sublinhou o seu «profundo desagrado por não estar aqui nenhum membro do Governo. Seria muito importante que cá estivessem, nestes territórios rurais, interiores, de baixa densidade, que os governantes dizem que é preciso valorizar. Não basta os discursos, é preciso acompanhar os territórios». «Já basta de centralismo lisboeta!», defendeu o vice presidente da CCDR Alentejo.

 

Pedro Rodrigues, vice-reitor da Universidade do Porto para a investigação, acrescentou: «só fazem falta os que cá estão».

Este responsável pela universidade que, através do seu CIBIO-InBio, é uma das parceiras fulcrais deste projeto, salientou que o país está «carenciado de iniciativas com qualidade e com cariz científico promovidas pelo poder local», como é o caso.

Nuno Ferrand, coordenador científico do CIBIO-InBio da Universidade do Porto, estava visivelmente satisfeito: «há dias perfeitos na construção das ideias e dos sonhos. Hoje acho que é um desses dias perfeitos, por ser o início de um sonho!».

«Não há território melhor para este projeto!», garantiu Nuno Ferrand, que sublinhou a intenção de «promover alternativas para trazer e fixar pessoas, com o turismo científico e ecológico e a investigação. Teremos também ciência cidadã, juntar a investigação à arqueologia, à arte, a tudo aquilo que é já património do concelho».

Pedro Rodrigues, o vice-reitor da Universidade do Porto, tinha exprimido antes o desejo de que, «no futuro, alunos nossos possam estar aqui».

Nuno Ferrand foi mais longe, anunciando que já há «reservas de alunos de universidades como Cambridge, Oxford, Harvard ou Montpellier, interessados em vir para aqui, para ter as suas aulas em contexto mediterrânico».

É que, haveria de salientar Jorge Pulido Valente, «este projeto, embora se localize no concelho de Mértola», é de «dimensão regional, nacional e mesmo internacional». Estes aspetos, acrescentou, foram cruciais para «convencer as estruturas que decidem o financiamento».

O vice presidente da CCDR Alentejo fez ainda questão de «felicitar a Câmara de Mértola não só por este projeto, mas por tudo o que está por trás dele: uma estratégia de médio e longo prazo».

 

Paulo Célio Alves, coordenador do projeto da Estação Biológica por parte do do CIBIO-InBIO, recordou que «há mais de vinte anos» trabalha em Mértola. «Às vezes perguntam-me: porquê Mértola? Você é lá da Universidade do Porto e vem para cá porquê?». Porque «Mértola é um lugar único, tem uma quantidade de endemismos ibéricos e uma biodiversidade imensa», começou por explicar.

Em termos de paisagem, o concelho, em grande parte integrado no Parque Natural do Vale do Guadiana, tem estepes cerealíferas, montado de sobro e de azinho, mas também «pequenas porções que são ainda selvagens. Isso é único, porque é raro termos zonas mediterrânicas selvagens!», acrescentou o investigador.

Quanto à futura estrutura, Paulo Célio Alves antecipou que «no mesmo espaço, vão coabitar investigadores nacionais e internacionais, estudantes das universidades, mas também crianças das escolas, agentes da agricultura e da pecuária». Tudo isto porque uma das principais missões da Estação Biológica será «fazer transferência de conhecimento».

«A Estação não é de Mértola, está em Mértola. Representa uma região, o Baixo Alentejo e o Vale do Guadiana, mas extravasa esta região. Isto é nacional, é internacional, e está a suscitar grande interesse no estrangeiro».

Nesse âmbito, o investigador anunciou, «em primeira mão», que, em Setembro do próximo ano, «teremos aqui em Mértola 30 a 40 especialistas de todo o mundo, que vão traçar um plano de ação para recuperar o gato-bravo». Depois do sucesso da reintrodução do lince-ibérico, há muito conhecimento a partilhar.

Paulo Célio Alves recordou igualmente que, apesar de não haver ainda uma casa, já há dois anos que a Estação começou a trabalhar, fazendo um estudo de caracterização genética da perdiz-vermelha, a monitorização das populações de coelho-bravo, projetos de formação ou de promoção do ecoturismo e do birdwatching, cursos de Verão, conferências, entre muitas outras atividades.

A par da Estação Biológica, será criada a Galeria da Biodiversidade de Mértola, inspirada, segundo Paulo Célio Alves, na que existe no Porto. Será um verdadeiro Centro de Interpretação do Vale do Guadiana.

A Galeria será instalada em dois dos armazéns do antigo complexo da EPAC, «misturando ciência e arte». Permitirá «fazer uma viagem pelo Guadiana, inspirada no trigo, já que o edifício foi construído para o armazenar», mostrando «como é que o trigo moldou a paisagem», mas também mostrando a «biodiversidade, o capital natural» deste território.

 

 

Rosinda Pimenta, vereadora da Câmara de Mértola, defendeu que «os lugares, os edifícios, também têm alma». Os antigos silos, que representam um «período da história» já passado, quando o cultivo do trigo era a base da economia alentejana, vão agora ganhar uma nova alma, mas sem destruir a antiga e, sobretudo, sem destruir a memória do lugar.

«A nossa presença aqui é também, para esta velha casa em ruínas, um primeiro conforto», salientou a vereadora.

Rosinda Pimenta recordou a génese do trabalho que caracteriza Mértola nas décadas mais recentes, desde 1978, com o início da investigação arqueológica e histórica, «um trabalho impulsionado pela autarquia», que depois veio a dar origem ao Campo Arqueológico de Mértola e «ao trabalho seguinte do Parque Natural do Vale do Guadiana». Nos últimos anos, recordou, «o território teve ganhos significativos de biodiversidade, com a reintrodução do lince-ibérico como projeto mais significativo».

Mas todo o projeto da Estação Biológica e o que ele significa para Mértola é «um desafio», como o próprio território o é. Trata-se, frisou a vereadora, de «um território de muito baixa densidade, com apenas 5 habitantes por quilómetro quadrado e mais de 35% da população com mais de 65 anos. Mas estas 5 pessoas/km2 são exemplo de resiliência».

Por tudo isto, considerou, «Mértola pode ser um laboratório para o futuro, porque é um território que pode dar algumas lições».

Uma das grandes apostas da Estação Biológica é poder ser um verdadeiro Centro de Valorização e de Transferência de Tecnologia. Por isso, revelou Rosinda Pimenta, haverá «colaboração com as universidades, mas também com os empresários locais e com as instituições que trabalham no território ao nível da conservação da natureza», como o ICNF.

E quanto aos edifícios dos antigos silos, escritórios e armazéns da EPAC, o que será feito? Jorge Carvalho e Teresa Novais, da ANC Arquitetos, autores do projeto e vencedores do concurso lançado pela Câmara, que previa a «reutilização do edifício», explicaram as suas ideias

Os antigos silos são «memória industrial» de um tempo outro, mas também «um marco na paisagem», «uma presença icónica» na «paisagem e na relação com o centro histórico de Mértola», como os classificou o arquiteto Jorge Carvalho.

Por seu lado, o presidente Jorge Rosa já tinha garantido que, apesar de ser hoje conhecido como «o mamarracho de além-rio» (por se situar na margem esquerda do Guadiana, frente à vila de Mértola), em breve «passará a ser um edifício bonito e moderno».

«Além de um dia perfeito, este é também um dia feliz!», concluiu, por seu lado, a vereadora Rosinda Pimenta.

 

Fotos: Nuno Costa | Sul Informação

 

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