O lado virtuoso dos territórios de baixa densidade

Afinal, «a forma de fugir à dicotomia litoral-interior é olhar para o mundo»

Aldeia da Mesquita

Volto ao assunto dos territórios de baixa densidade (TBD). No dia 16 de Novembro, estive na aldeia de Mesquita, na freguesia do Espírito Santo do concelho de Mértola, para falar sobre associativismo e desenvolvimento nos territórios de baixa densidade.

Esta aldeia, hoje com 20 habitantes, já não consta do mapa, tornou-se invisível. Todavia, o esforço conjugado de várias associações do concelho, do município e da entidade regional de turismo do Alentejo e Ribatejo tornou possível que a aldeia de Mesquita voltasse à tona da água e, no passado sábado, foi inaugurado um novo albergue e outras facilidades para os peregrinos que por aqui passam a caminho de Santiago de Compostela. E os caminhantes de Santiago farão com que a aldeia de Mesquita volte a constar dos mapas de Portugal.

Para mostrar as duas faces do problema, eu diria que a aldeia de Mesquita está no fim do mundo, mas que o fim do mundo é já ali. Num país que tem uma largura de pouco mais de 200Km, esse país tem, seguramente, muitas maneiras de abordar a questão da baixa densidade ou, então,de revelar a sua incompetência de muitas maneiras. Quero aproveitar esta oportunidade para uma breve reflexão sobre o que eu costumo designar como “o lado virtuoso da baixa densidade”, num país que é um pequeno retângulo onde todos somos vizinhos, reais ou virtuais.

1) Problemas novos e conceitos velhos, a perspetiva e o ângulo de observação

Na era digital, o problema da baixa densidade não se resolve ao restabelecer um stock de população;a mobilidade e a velocidade são os conceitos do nosso tempo, isto significa que há muitas maneiras de consolidar progressivamente um tecido capilar de relações e, por essa via, gerar uma espécie de cuidadores informais do território; isto significa que seremos não apenas caminhantes e peregrinos de Compostela, mas, também, caminhantes e peregrinos da aldeia de Mesquita, sea programação e o planeamento dos fluxos de visitação ajudarem a criar uma curadoria virtuosa.

2) Impedir a fratura digital e garantir a cobertura do território

Na era digital, seria um crime de lesa-pátria reabrir, mais uma vez, a ferida das assimetrias territoriais, desta vez em matéria de infraestruturação digital. Uma adequada cobertura digital do território permitirá criar uma “baixa densidade virtual e aumentada” e, por essa via, um território-desejado, feito, não apenas, de muita nostalgia, mas, sobretudo, de conhecimento, cultura e criatividade. Sem cobertura digital adequada não teremos nunca uma baixa densidade inteligente e criativa.

3) Os sinais distintivos, a distinção, o lado virtuoso do território

Nesta sequência, para promover a autoestima de um território e o seu lado mais virtuoso precisamos de revelar os seus sinais mais distintivos, ou seja, de mapear a sua distinção. Estes sinais são muito variados: uma amenidade, um endemismo, uma mina de água, uma vista panorâmica, um percurso de natureza, uma estação arqueológica, um monumento, um parque natural, uma paisagem literária, festas e festividades, a gastronomia local, produtos com denominação, gente ilustre, etc. Na sociedade do conhecimento, todos os défices do território são défices de conhecimento, ou seja, os territórios não são pobres, estão pobres transitoriamente. Na sociedade do conhecimento, se programarmos e planearmos o trabalho de investigação-ação iremos redescobrir os sinais distintivos, a arte da sua reticulação e o lado virtuoso da baixa densidade.

4) Inteligência emocional e criatividade para combater o tédio urbano

Os territórios de baixa densidade, após uma cuidada identificação dos seus sinais distintivos, podem e devem ser objeto de um marketing territorial apropriado à sua distinção. Os recursos emocionais de que dispõem são imensos: a paz, o silêncio, a contemplação, o horizonte, os sons e os cheiros da natureza, mas, também, o convívio, a mesa, os percursos de natureza, o prazer da companhia, enfim, tudo o que permite combater o tédio urbano numa viagem inesquecível de ida e volta ao “fim do mundo”. Esta economia das experiências emocionais está perfeitamente ao alcance das estruturas associativas, associações de municípios e comunidades intermunicipais.

5) O associativismo de 2º grau em benefício dos territórios de baixa densidade

Este ponto é nuclear para levar a bom porto tudo o que se disse anteriormente. Desde logo, o movimento associativo de primeiro grau não tem meios e recursos para “desencravar” um território de baixa densidade. Em segundo lugar, o movimento associativo não pode ficar muito dependente do município sob pena de ficar bastante condicionado. Em terceiro lugar, o movimento associativo de um lugar, freguesia ou concelho deve ser pensado de “dentro para fora e de fora para dentro” do concelho e buscar apoios em muitas outras instâncias, por exemplo as instituições de ensino superior, que ajudarão o movimento a projetar-se para fora das suas fronteiras.

6) O município-loja do cidadão, serviço polivalente e ambulatório

Outra faceta virtuosa da baixa densidade diz respeito à organização dos serviços municipais, ao formato loja do cidadão com terminais e guichet único nas diferentes juntas de freguesia. Alguns serviços poderão funcionar ainda em regime de ambulatório e outros em administração online. Na loja do cidadão pode funcionar, também, o Banco do Cidadão em várias modalidades: banco do alojamento local, banco do serviço de voluntariado, banco da moeda local, banco dos cuidadores informais, banco dos mercados de ocasião.

7) Uma economia de base eventual e o planeamento dos fluxos de visitação

O lado virtuoso da baixa densidade implica uma programação e um planeamento rigorosos dos fluxos de visitação que acorrem aos diversos eventos do concelho ou concelhos vizinhos. O rigor decorre em linha direta da escassez de meios e recursos. Por isso, o concelho deve refletir sobre qual a imagem de marca que pretende traçar, porque essa imagem de marca determina não só a sua base produtiva, mas, também, os tipos de público que visa atingir: uma rede capilar de micro eventos, dois ou três eventos anuais de grande prestígio, eventos conjuntos com concelhos vizinhos, etc.

8) Os embaixadores do território e os clubes de amigos da baixa densidade

Um dos aspetos mais interessantes do lado virtuoso da baixa densidade é o seu simbolismo associativo, aqui traduzido sob a forma de “clubes de amigos” e seus respetivos embaixadores. Mais uma vez, a baixa densidade não deve ser pensada apenas de “dentro para dentro”, é imperioso que toda esta inteligência emocional, nostálgica e romântica num primeiro momento, seja depois canalizada para um projeto social suficientemente mobilizador e de preferência sustentado na investigação e no conhecimento, de tal modo que o clube de amigos possa convergir para um movimento de defesa desses lugares “do fim do mundo”.

9) A baixa densidade tem de ser exemplar em matéria de envelhecimento ativo

No plano do simbolismo e da mobilização, o programa mais exemplar será o da sociedade sénior, mais exatamente o programa em matéria de envelhecimento ativo: acessibilidade e mobilidade, as artes e ofícios, a nutrição do idoso, os serviços ambulatórios, a hospitalização domiciliária, os cuidados e os cuidadores informais, o turismo sénior, a saúde psicossocial e terapêutica, a segurança dos seniores que vivem em lugares isolados. Estas diversas áreas de intervenção social não podem ser outras tantas gavetas administrativas a funcionarem descoordenadamente. Nos lugares de baixa densidade, com poucas dezenas de habitantes, é imperioso desenhar um serviço polivalente com uma única porta de entrada para todos estes serviços.

10) A baixa densidade tem de ser exemplar em matéria de economia circular

No mesmo plano, o segundo programa exemplar deverá ser o da economia circular, em tudo o que diga respeito a medidas de mitigação, remediação, regeneração, reabilitação e compensação como consequência das alterações climáticas. Desde os hortejos tradicionais e agricultura comunitária até às medidas de compensação por serviços ambientais, há uma gama imensa de medidas práticas que podem ser desenvolvidas em parques agroecológicos municipais, em logradouros e áreas periurbanas, em parques naturais, em quintas pedagógicas, recreativas e terapêuticas, em campos de férias e trabalho, etc. Também aqui a investigação e a inovação agroecológicas podem chamar a atenção para os territórios de baixa densidade, por exemplo, com programas de estágio de investigação residencial nos tais lugares do “fim do mundo”.

Notas Finais

Para surpresa minha, a antiga escola primária da aldeia de Mesquita estava cheia.A vista panorâmica é assombrosa, o Guadiana, o Pomarão e a fronteira espanhola estão ali mesmo à nossa frente.

O dia estava esplendoroso, feito de um céu azul resplandecente e um sol extraordinariamente afetuoso. Antes do almoço fomos inaugurar mais um “Caminho de Santiago”, o albergue e outras facilidades para receber os peregrinos. Lá estava, também, o senhor padre. Ao almoço, aquele cozido de grão estava divinal e não tardou que se ouvisse o canto alentejano numa viola campaniça.

Ali já não havia tédio ou silêncio. A aldeia de Mesquita está no fim do mundo, mas o fim do mundo é já ali. Afinal, e como diz o senhor presidente da Câmara do Fundão, «a forma de fugir à dicotomia litoral-interior é olhar para o mundo».

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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