A Água de Schrödinger

Mais uma reflexão bem humorada e incisiva de Gonçalo Duarte Gomes

Foto: Hélder Santos|Sul Informação

Na semana passada, o Governo reparou finalmente que o Algarve se encontrava em seca extrema.

O que é bom, porque o anterior Governo, que é o mesmo, não o fez.

Nem mesmo na hora da sua despedida, quando, no final de Setembro, dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera já colocavam o Sotavento Algarvio em situação de seca extrema, de acordo com o Palmer Drought Severity Index (PDSI), índice que monitoriza o estado de seca no território nacional, combinando os efeitos de temperatura, precipitação e capacidade de água disponível no solo.

Este último parâmetro, em particular, indicava, na mesma altura, que os nossos solos possuíam tão pouca água que as plantas não conseguiam captar água suficiente para evitar a constante desidratação. Ou seja, estávamos então à beira da falência ecológica do solo nas suas funções vitais, por falta de água.

De lá para cá, e apesar de umas aguadas caídas nos últimos dias, nada melhorou. Pelo contrário, na medida em que Outubro de 2019 foi, homologamente, o mais quente alguma vez registado, segundo o Serviço de Monitorização das Alterações Climáticas do Programa Copérnico, batendo o anterior registo máximo, de 2015.

Bom, mas mais vale tarde do que nunca, certo?

Mais ou menos. É que até para essa nivelação por baixo, deve haver mínimos. Que, no caso, parecem difíceis de cumprir, ou pelo menos a via até eles, na melhor das hipóteses, é sinuosa.

Isto porque o recente ditame de poupança hídrica, liderado pelo Ministro do Ambiente e pela Ministra da Agricultura, enquanto membros da Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca, vai ter que enfrentar… os seus próprios agentes.

Comecemos pelas Águas do Algarve, entidade gestora da distribuição em alta (basicamente, captação, tratamento, elevação e transporte da água até ao armazenamento, regra geral nos reservatórios municipais). Começou o ano a garantir que as reservas então existentes, numa altura em que o caso já parecia mal parado, chegavam para 2 anos, caso a água se destinasse apenas para consumo humano. Portanto, caso a realidade não fosse como é.

No mês passado, com jeitinho, a água já chegava apenas até final do ano, independentemente da precipitação que se viesse ou não a verificar. Ou seja, em 7 meses, o horizonte de escassez passou de Março de 2021 para Dezembro de 2019 ou, vá, Janeiro de 2020.

E sempre sem impor – dentro das suas competências, naturalmente – ou propor medidas de racionamento ou gestão de crise de recursos hídricos. Propôs, antes, pingos de consciência na utilização por parte dos consumidores, que pareceram tão escassos quanto a própria água.

Paralelamente, uma outra entidade tutelada por um dos Ministérios que agora desperta para o problema, a Direcção-Regional de Agricultura e Pescas do Algarve, tem mantido uma zelosa omissão não apenas relativamente a muitas más práticas na gestão da água no sector agrícola, mas também relativamente ao galopante processo de destruição sistemática dos sistemas tradicionais de produção que varre o Algarve, especificamente pomares de sequeiro – mais ou menos estruturados – e conjuntos de árvores autóctones como a alfarrobeira e a oliveira, os ex-libris da aliança fitossociológica Oleo-Ceratonion (cujo alcance se diz mesmo estabelecer os limites do Mediterrâneo, cuja dieta tanto se canta), ancestralmente adaptados às condições edafo-climáticas da região, arrancados pela raiz para dar lugar a outras culturas, baseadas em regadio intensivo e extensivo, incluindo árvores exóticas de fruto, onde o abacate, por moda alimentar e consequente valorização económica, se destaca (adoptando dados de referência da Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, “bebendo” em média algo como 8.000 a 12.000 l/ha/dia).

Nada contra os empreendimentos económicos, ainda mais associados ao Sector Primário. Mas ponderados, trabalhados – em conjunto com os promotores – e geridos num quadro de equilíbrio ecológico, sócio-cultural e económico, para que a materialização dos interesses particulares não “seque” o interesse público.

Ou seria esta a adaptação das culturas às disponibilidades hídricas que defendeu a Ministra da Agricultura?

Por outro lado, o cenário na distribuição em baixa, a cargo dos municípios e respectivas empresas municipais, que traz a água até às nossas torneiras, também não é famoso.

O Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal (RASARP), publicado pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, sistematiza e disponibiliza informação fiável – porque resultante do exercício de regulação e de uma recolha junto das diversas entidades que intervêm no sector – quanto ao ponto de situação nesta matéria, bem como à sua evolução.

Pois bem, no RASARP referente ao ano de 2018, no capítulo do abastecimento de água, o Algarve obteve resultados preocupantes em duas categorias particularmente relevantes: perdas reais de água (média regional de 183 l/ramal/dia) e percentagem de água não facturada (média regional de 30%).

Junte-se relvados e vegetação alóctone em espaço urbano, sedenta de rega intensa, regas em horários desadequados e através de técnicas pouco eficientes ou que, por não serem mantidas, regam mais asfalto e calçadas do que jardins.

Some-se ainda, já no sector privado, a pressão turística do boom populacional estival ou dos jardins exóticos e campos de golfe sobre os recursos hídricos da região, tal como os devaneios dos consumidores particulares, para quem lavagens de varandas e pavimentos à mangueirada ou andar com o bólide a brilhar é que importa.

É portanto identificável uma cultura transversal de optimismo ligeiro na gestão da água, que flui sem um estudo da capacidade de carga do Algarve, em termos de recursos hídricos, ou pelo menos da viabilidade da actual carga. As opções com que seremos confrontados num futuro próximo, recomendam que nos munamos desse conhecimento, sob pena de sermos incapazes de arrepiar caminho, para já inexorável rumo a ficarmos ressequidos como as proverbiais passinhas do Algarve.

Daí que, pese embora o Ministro do Ambiente tenha certeiramente identificado o problema da seca como “estrutural”, e como tendencialmente mais gravoso, talvez não estivesse a pensar neste quadro geral.

Se não há água, como se permite que seja gerida como se tivesse avonde? Ou no Algarve temos água de Schrödinger, simultaneamente existente e não-existente?

Física quântica à parte, foi indicada a suspensão de novas licenças para captação de água no Algarve (haverá capacidade para fiscalizar esta situação ou o aprofundamento das captações já existentes? Estarão incluídos os sonhos autárquicos de abertura de captações para alimentação de praias artificiais em plena Serra? Como está a monitorização dos níveis dos aquíferos e da intrusão salina?) e pretende-se incentivar a utilização de águas residuais tratadas em rega e lavagem urbana – para tal sendo apenas necessária a descodificação e implementação do labiríntico Decreto-Lei n.º 119/2019.

De aplaudir, sem dúvida, mas constitui mero ataque aos efeitos, e não às causas.

Até quando se combaterão problemas estruturais com medidas circunstanciais?

Seria bom falarmos muito a sério sobre isto.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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