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Aqui não há pressas. “Jaqueline” está ali há séculos, enterrada no cemitério criado pelos primeiros ocupantes cristãos de Cacela. Nuno Cardoso chegou há pouco de Inglaterra para participar nas escavações da campanha arqueológica “Muçulmanos e Cristãos em Cacela Medieval: território e identidades em mudança”, mas também não tem planos para ir a lado nenhum.

Bem vistas as coisas, a arqueologia é mesmo isto: paciência, método e destreza, para que o ato de desenterrar o passado permita encontrar novas peças do grande puzzle que é a História.

Já nesta história, assim, com h pequeno, que aqui se conta, “Jaqueline” – que também pode ser “Zacarias”, ainda se está por apurar e até correm apostas – é um dos muitos esqueletos que foram encontrados pela equipa de arqueólogos, investigadores de outras áreas e alunos de diferentes instituições no Campo-Escola de Arqueologia de Cacela, em Vila Real de Santo António, cuja edição de 2019 começou a 17 de Junho e acaba hoje, sexta-feira, dia 12.

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Neste caso, é Nuno Cardoso, um já não tão jovem aluno da Universidade de Winchester, em Inglaterra, que vai raspando, com uma pequena faca, a bacia de um ser humano que desponta da terra.

«É precisa muita paciência. Temos de usar esta faquinha, uma colher de chá e um pincel. Mas é espetacular», disse ao Sul Informação, o aluno da universidade britânica, sobre o qual recaiu a honra de nomear este esqueleto.

«Esta é a minha primeira escavação e estou a adorar. Nunca tinha escavado ossos humanos. Está a ser brutal», revelou este português que está radicado na Inglaterra há 12 anos e que, recentemente, decidiu voltar a estudar.

 

Sul Informação

 

Ao seu lado está Humberto Veríssimo, aluno de mestrado da Universidade do Algarve que participa no campo-escola de Cacela pela segunda vez.

«Já conhecia o trabalho que vinha do ano passado, acaba por ser a continuação. É interessante a quantidade de enterramentos que temos encontrado, sobretudo de juvenis», explicou, em declarações ao nosso jornal. Isto indica que, provavelmente, havia muita mortalidade infantil à época.

A quantidade de esqueletos humanos encontrados é, de resto, o destaque do trabalho que foi feito no campo, em 2019, no âmbito deste projeto dinamizado em conjunto pela Universidade do Algarve (UAlg), pela Direção Regional de Cultura do Algarve (DRCAlg) e pela Câmara de VRSA.

«Quando recomeçámos as escavações, em 2018, a última sepultura que estava assinalada, desde 2001, era a 56. Neste momento, vamos já em 79. Ou seja, em dois anos, foram encontradas 23 sepulturas. Principalmente no corrente ano, foram muitos os esqueletos humanos encontrados», revelou ao Sul Informação a arqueóloga Maria João Valente, da Universidade do Algarve.

Isso levou a que «não tenha sido possível ir para outra localização», ao contrário do que estava previsto. «Foram tantos os esqueletos humanos encontrados, que têm de ser desenterrados com cuidado, que mais vale ir devagar e fazer as coisas bem do que andarmos a correr e arriscar a estragar alguma coisa».

«Nós, os arqueólogos, dizemos muitas vezes que um ato de escavação é, ao mesmo tempo, um ato de destruição. Porque não voltamos a ter o que escavámos. Ou se retira a informação no local e fica tudo bem feito, ou já não a recuperamos. Por isso, é importante ir devagar», reforçou Maria João Valente, co-coordenadora dos trabalhos arqueológicos de Cacela.

 

Sul Informação

 

Apesar de não ter sido possível avançar para outro local, naquela que seria uma nova tentativa de encontrar a antiga Ermida de Nossa Senhora dos Mártires e  saber quais os limites do cemitério que existiu, a partir do século XIII, na zona a nascente da atual aldeia de Cacela-a-Velha, os investigadores não dão o seu tempo como perdido. Antes pelo contrário.

«Já estávamos à espera de encontrar muitas ossadas humanas. Foi um mês muito intenso e muito profícuo. Esta é uma necrópole de grande dimensão», enquadrou Cristina Tété Garcia, da DRCAlg, também ela coordenadora da campanha.

É que, juntamente com os esqueletos, foi surgindo outro tipo de vestígios, estes mais antigos e provenientes do bairro islâmico que terá sido destruído com a chegada dos cristãos e por cima do qual foi construída a ermida e o cemitério que a rodeava.

E há um pouco de tudo, desde brincos a cerâmica, mas também restos animais – incluindo de companhia – e utensílios de cozinha, nomeadamente uma grande quantidade de conchas de vieira, «que eram utilizadas como colheres para servir a sopa e a comida».

Tudo o que foi encontrado foi criteriosamente separado, acondicionado e etiquetado pela investigadora Ana Nunes, da Universidade do Algarve. Este trabalho de sapa é tão ou mais importante do que se faz no terreno, pois é a base para o trabalho em laboratório, que se poderá prolongar por muitos anos e ser feito por cientistas que não participaram na campanha.

Este material, nomeadamente as ossadas humanas, «será levado para a Universidade do Algarve, para ser armazenado num local onde não há alterações de temperatura, para que, quando vierem os nossos colegas antropólogos, possam passar algum tempo a estudá-lo».

 

Sul Informação

 

«Os materiais do ano passado já estão na Universidade do Algarve, mas também vão ser estudados para o ano. Nós decidimos fazer um estudo mais completo dos restos humanos de dois em dois anos», enquadrou Maria João Valente.

Segundo a investigadora da UAlg, «os adultos estão muito bem preservados. Até já temos a reconstituição 3D de alguns, que iremos mostrar quando apresentarmos publicamente os resultados do projeto».

Na reta final do campo-escola de 2019, tanto Maria João Valente como Cristina Tété Garcia admitem que o grande objetivo das escavações continua a ser a descoberta da ermida e, eventualmente, do local onde está a necrópole islâmica, mais antiga.

«Infelizmente ainda não encontrámos a ermida, o templo que agrega todas estas sepulturas. Mas ela tem de estar cá. O que tem lógica é a ermida estar mais protegida pelo castelo, numa zona mais alta. Para o ano, provavelmente, vamos fazer uma sondagem ali na zona de canavial [junto ao caminho que desce de Cacela para a foz da ribeira]», disse ao Sul Informação Cristina Teté Garcia.

«Porque, como descobrimos o ano passado, os muros que eu pensava que seriam da ermida, afinal eram do bairro islâmico, que é uma estrutura planeadíssima, de raiz. As vias foram construídas num sistema ortogonal e foram implantados lotes de terrenos que foram distribuídos às pessoas para construírem as suas casas, como se fosse uma urbanização, o que é excecional para a Idade Média», acrescentou.

 

Sul Informação
Cristina Tété Garcia e Maria João Valente

 

Mesmo antes de encontrar o templo e os seus vestígios, que seriam uma verdadeira cereja no topo do bolo destas escavações, a Câmara de Vila Real de Santo António já fala em musealização dos achados.

De acordo com Conceição Cabrita, presidente da Câmara de VRSA, «o projeto continuará nos próximos dois anos e permitirá aprofundar o conhecimento sobre o passado de Cacela Velha e contribuir para a musealização deste território».

Já Adriana Freire Nogueira, diretora regional de Cultura, que visitou ontem o campo-escola acompanhada pela edil vilarrealense, disse ue «esta campanha é sinónimo da defesa e da salvaguarda do património, pelo que a instituição não poderia ficar fora deste protocolo e contribuir para a preservação deste importante sítio arqueológico».

Entretanto, o trabalho vai continuar, na UAlg e noutras instituições. E embora a musealização seja uma ideia que as coordenadoras do projeto não enjeitam – ainda que falem em «pegar no Museu que Cacela já é» e em fazer um itinerário em torno da aldeia, e não «um museu de facto» – o mais importante, agora, é perceber o que se desenterrou. E, para isso, é necessária verba.

«Para o ano e para 2021, as escavações estão garantidas. O que nós procuramos, agora, é ter financiamento, não tanto para escavar – pois as coisas estão mais ou menos garantidas pela Câmara de VRSA, que tem feito um esforço extraordinário para nos dar essa capacidade de alojamento e alimentação -, mas para fazer trabalho de laboratório», disse Maria João Valente.

 

Sul Informação

 

Em causa, estão «as datações de rádiocarbono, o estudo de isótopos, o ADN antigo», todos eles «exames que custam muito dinheiro. As análises estão a ser feitas, neste momento, «a conta-gotas».

«Temos um projeto muito engraçado com o laboratório Hércules, de Évora, que já tem algumas informações sobre isótopos e que nos dá indicações interessantes sobre a população aqui enterrada. Tudo aponta para que muitas das pessoas que foram enterradas na necrópole que está a ser escavada não tenham vivido aqui em Cacela, mas sim na área limítrofe, mais para a serra ou para o Barrocal», acrescentou a arqueóloga da UAlg.

Esta ocupação intensa da necrópole e a diversidade de pessoas aqui enterradas «vai ao encontro do que se pode ler nos documentos históricos, que referem que esta ermida e o seu cemitério eram de grande romaria e que havia uma fábrica que sobrevivia das esmolas que as pessoas davam».

«Os visitadores da Ordem de Santiago é com alguma pena que reportam isto, pois há a igreja Matriz, nova, lá em cima, mas as pessoas não largam esta e mantêm-na à sua custa», contou Cristina Tété Garcia.

A arqueóloga e investigadora lembrou que, durante muito tempo, «esta era a igreja de toda esta zona do Baixo Guadiana, já que Alcoutim e Castro Marim não tinham igreja».

Hoje, as últimas ferramentas vão ser arrumadas e o sítio arqueológico será preparado para mais um ano de repouso. Em 2020, por esta altura, há mais escavações.

 

Fotos: Rodrigo Damasceno|Sul Informação

 

 

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