Uma visita à Herdade do Esporão

A Herdade do Esporão é um complexo agroecológico que a própria herdade caracteriza como uma “política de sistema integrado”

Depois de, na última crónica, ter escrito sobre a relação entre inteligência emocional e território-desejado, nada melhor do que um passeio até Reguengos de Monsaraz e uma visita ao universo encantado da Herdade do Esporão, um terroir inteligente e criativo, culto e adulto, muito próximo de Reguengos.

Fui à Herdade do Esporão (HE) em busca da sua distinção, dos seus signos distintivos territoriais, um tema que me apaixona sobremaneira. No Esporão, é a herdade que nos recebe, um universo naturalista e quase poético que toma conta de nós. Aos visitantes recomendo, também, uma visita prévia à página web da Herdade e, se possível, uma vista de olhos pelos relatórios de sustentabilidade do “complexo do Esporão”.

 

1. A agroecologia do sistema integrado da Herdade do Esporão

A HE é um complexo agroecológico que a própria herdade caracteriza como uma “política de sistema integrado” entre qualidade, ambiente, energia, segurança e saúde e que inclui a gestão de recursos, as melhores práticas agrícolas e uma cultura de boas relações com a comunidade e os diversos parceiros da HE.

Na página da HE podemos ler “As únicas pegadas que queremos deixar são as que ficam temporariamente marcadas na terra, por entre as vinhas e olivais, por isso, procuramos reduzir o nosso impacto ambiental através de uma gestão racional e responsável”.

Eis alguns traços dessa agroecologia tão especial:
– Os sete solos da HE e a sua especial geologia,
– A energia, a ecoeficiência e o ecodesign,
– Os 3R (redução, reutilização e reciclagem) e a gestão racional da água,
– As melhores práticas agrícolas como as sebes de fixação de auxiliares, a compostagem, a sideração e a poda, a camada vegetal de proteção e fertilização dos solos, o coberto vegetal das entrelinhas, as caixas de abrigo para os morcegos no combate à traça, etc.

No conjunto, trata-se de consumar o casamento perfeito entre homem e natureza através da agricultura biológica e respeitando o balanço dos seus serviços ecossistémicos, de tal forma que eles possam devolver à HE todas as suas potencialidades de realização. Esta é a noção de sustentabilidade que é praticada na HE, uma coevolução serena entre homem e natureza.

 

II. O decálogo iconográfico da Herdade do Esporão

A minha visita à HE tinha, igualmente, um propósito mais particular, a saber, observar os seus signos distintivos e traçar aquilo que eu aqui designo como o “decálogo iconográfico” da HE, se quisermos, um instrumento de marketing territorial que a HE pode utilizar como sua imagem de marca em diversos momentos e circunstâncias.

Da minha observação, eis os dez sinais mais performativos da HE:

1. Esporão, a missão: produzir de forma responsável de acordo com a inspiração da natureza.

2. Esporão, o território: a harmonia entre a unidade de paisagem e o mosaico agro-silvo-pastoril.

3. Esporão, o capital natural: entre a biodiversidade, a alquimia do terroir e os serviços ambientais.

4. Esporão, o ciclo da natureza: o tempo, o sabor da terra, as folhas mortas e a floresta viva.

5. Esporão, a economia circular: os 3R, as internalidades e as boas práticas agro-florestais.

6. Esporão, a estética da paisagem: o compromisso entre a arquitectura paisagística e as técnicas de reabilitação e bioconstrução.

7. Esporão, o património cultural: do museu arqueológico dos Perdigões aos frescos da Nossa Senhora dos Remédios.

8. Esporão, a memória futura: do campo ampelográfico vitivinícola à biblioteca digital e etnográfica de gastronomia portuguesa.

9. Esporão, o nosso bem comum: da participação da comunidade local às redes colaborativas do ecossistema organizacional.

10. Esporão, a ética da comunicação: do marketing do território à cultura digital e à responsabilidade social e ambiental perante a comunidade local.

 

III. A economia de rede e visitação, em face da nova iconografia da Herdade do Esporão

Perante esta refrescante iconografia, vale a pena rever a economia de rede e visitação da HE. A cenografia e a coreografia da HE são um excelente pretexto para esta revisitação. Eis a minha sugestão:

1. Visita técnica: as boas práticas vitivinícolas e oleícolas (convencionais e biológicas),
2. Visita técnica: a gestão do mosaico-agroflorestal e do montado multifuncional,
3. Visita técnica: as tipologias de habitat e os serviços ecossistémicos prestados,
4. Visita técnica: o campo ampelográfico e o mapa vitivinícola do Esporão,
5. Visita técnica: as práticas da economia circular no Esporão,
6. Visita técnica: folhas mortas, floresta viva, a silvicultura em acção.

7. Visita histórica: uma viagem oleológica pelo olival centenário e milenar,
8. Visita histórica: da Torre do Esporão aos frescos da Nossa Senhora dos Remédios.

9. Visita recreativa: Esporão, hotspot, observação da fauna e flora locais,
10. Visita recreativa: o grande dia solar do solstício de verão,
11. Visita recreativa: o desporto de orientação e a recreação familiar,
12. Vista terapêutica: a celebração do silêncio e da meditação.

 

IV. O ecossistema organizacional da HE, o modelo de governança territorial

Com a informação recolhida, material e imaterial, sobre o Esporão temos agora uma excelente oportunidade para reconsiderar o ecossistema organizacional da HE, isto é, o seu modelo de governança territorial, se quisermos, a sua nova cartografia de bens e serviços:

1. O novo mapa iconográfico e a cartografia produtiva do Esporão

O novo mapa iconográfico da HE permite-nos fazer a reconfiguração do seu território ou área de influência e refletir sobre a importância fundamental dos factores imateriais (o factor i) na redefinição da cadeia de valor dos produtos e na criação de uma nova cartografia produtiva de bens e serviços da HE.

2. O mapa dos nichos agroecológicos do Esporão

O sistema produtivo local do Esporão, os seus nichos ecológicos, o “cristal do esporão”, podem adquirir novas facetas, por exemplo, produtos obtidos com diferentes modos, tipologias e sistemas de produção podem ser extremamente atrativos para os consumidores e aumentar a variedade agroecológica do Esporão, mas, também, a frequência e qualidade dos seus visitantes.

3. O mapa gravitacional do Esporão

O novo mapa iconográfico e o novo mapa dos nichos ecológicos alteram substancialmente o mapa gravitacional do Esporão, a sua área de influência e os seus interlocutores; transformar o Esporão num verdadeiro terroir e num ator-rede regional pode ser uma estratégia para o mundo por mais paradoxal que isto possa parecer.

 

Notas Finais

Há muitos fatores paradoxais que “esperam silenciosamente pelos erros da HE”, pois, como todos sabemos, há muitos campos no campo.

Vejamos alguns fatores críticos que se podem manifestar de muitas maneiras:

– A instrumentalidade do campo face à cidade e ao seu cosmopolitismo irresistível; de certo modo, o campo mimetiza cada vez mais a cidade,

– Se deixarmos cair o paternalismo e a nostalgia, se não confundirmos a realidade com os nossos desejos sobre a realidade, veremos melhor o que está a acontecer no campo português,

– Multiplicam-se os novos modelos de negócio ligados ao campo: caça e pesca, birdwatching, desportos radicais, festivais de verão, observação de estrelas, passeios de natureza, show cookings, todos associados ao processo de turistificação,

– O campo é, cada vez mais, lifestyle, complemento natural da cidade, integrado no pacote turístico; é também natural que surja muita imitação, muito kitch e muito pastiche,

– Mesmo as questões de ordenamento e planeamento do território serão vistas segundo um prisma muito diferente; os tecnocratas do digital tomarão conta da ocorrência, o campo não será o mesmo com sensores, GPS, sistemas de informação geográfica, nanotecnologias, para lá da chamada agricultura de precisão,

– Importará não esquecer as relações de força no campo; o small is beautiful existirá sempre, mas quem manda no campo são os pesos pesados da energetização, da cinegetização, e sobretudo da turistificação; seja como for, o small is beautiful encontrará sempre uma forma particular de coabitar com os grandes operadores,

– À medida que o processo de turistificação progredir para o interior, assistiremos, porventura, a um processo de gentrificação de pequenas, médias e grandes propriedades,

– Assistiremos, mesmo, à chegada dos neorurais, empreendedores muito móveis com residência múltipla e vivendo em pluriatividade e plurirrendimento,

– A economia local será, cada vez mais, marcada pelo ritmo dos eventos e a economia empresarial necessitará de prestígio e notoriedade para valorizar os seus produtos; o papel do marketing digital e das redes sociais será determinante no desenho destes eventos.

Perante todos estes fatores paradoxais e contraditórios, a Herdade do Esporão terá muitas oportunidades para escolher outras tantas narrativas e trajetórias.

As margens de erro existirão sempre, essa é a condição para a liberdade do Esporão, qual grão de areia suspenso num raio de sol.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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