Terras sem Sombra cruza músicos da Califórnia com as rotas da transumância numa viagem de identidades

Música de um dos mais conceituados grupos de câmara mundiais, um passeio pelos chafarizes e ainda a rota da transumância em mais um fim de semana de festival

Diretamente de San Francisco, Estados Unidos, para a igreja do convento de São Francisco, em Beja. A melhor música norte-americana, do século XIX à atualidade, numa viagem que significa «muito mais que um momento musical de qualidade indiscutível». O próximo destino do Festival Terras sem Sombra, em busca de identidades, acontece no dia 6 de Abril, às 21h30, com o concerto de The Delphi Trio, em Beja.

Antes da atuação do famoso agrupamento da Califórnia, a tarde de sábado é destinada ao conhecimento, pela mão de especialistas, de chafarizes, fontanários e poços da cidade, com histórias e particularidades de grande relevância.

A manhã de domingo, 7 de Abril, terá como alvo a antiga rota dos pastores, através das antigas canadas reais, autoestradas de gado, especialmente ovino, que uniam o Baixo Alentejo às serras da Estrela e da Gardunha e às cadeias montanhosas do interior de Espanha.

O Festival Terras sem Sombra, que constrói pontes e cria redes de diálogo, centra em 2019 atenções no tema «Sobre a Terra, Sobre o Mar – Viagens e Viagens na Música (Séculos XV-XXI)», no quadro dos 550 anos do nascimento de Vasco da Gama.

Abrange este ano todo o Alentejo, cruza a fronteira até Espanha e atravessa o Atlântico, para trazer até nós os Estados Unidos da América como país convidado.

 

 

Emoções à flor da pele: Trios de Jalbert e Schubert

Vencedor, em 2015, do prestigioso Orlando Concours, The Delphi Trio é um “peso-pesado” no mundo da música de câmara. O repertório clássico para trio constitui o foco das atuações deste ensemble que tem vindo a revolucionar a interpretação musical, graças, nomeadamente, ao domínio da riqueza tonal das cordas, ao deslumbrante pianismo e a uma flexibilidade rítmica que surpreende e cativa.

O concerto “Percursos Vitais: Trios de Pierre Jalbert e Franz Schubert”, na igreja da Pousada de São Francisco, de Beja, oferece um exemplo dessa maneira de entender a música. Jalbert, nascido em Manchester (New Hampshire), em 1967, numa família oriunda do vizinho Canadá, destaca-se como um dos mais notáveis compositores estado-unidenses da atualidade.

A sua obra reflete, num tom poético, com forte acento espiritual, os desafios que se colocam aos nossos dias, algo bem patente no “Trio para Piano e Cordas n.º 1”.

The Delphi Trio põe em diálogo tal visão contemporânea, bastante emotiva, com o “Trio para Piano e Cordas n.º 2” de Franz Schubert, o grande compositor austríaco do fim do Classicismo, cujo estilo inovador e sublime marcou, decisivamente, o triunfo da era romântica no panorama europeu.

Tudo isto permite antever no concerto de Beja um dos momentos altos da atual temporada do Terras Sem Sombra, evidenciando a sua projeção internacional, realçada pela presença de extraordinários intérpretes.

 

 

Chafarizes, fontes e poços de Beja

Um paradoxo da natureza faz de Beja uma cidade da água, oásis na planície ardente. Desde tempos remotos que a abundância de mananciais subterrâneos se tornou um dos seus fatores estratégicos.

Outrora rodeada de hortas, a cidade tirou partido dessa vantagem. Se os segredos das infraestruturas hidráulicas de Pax Iulia (algumas das quais ainda em funcionamento) aguardam que um estudo sistemático os venha desvendar, a tradição oral conserva viva a memória das fontes e algibes da Idade Média.

Mais tarde, no século XV, quando Beja ascendeu a sede ducal, as autoridades concelhias passaram a cuidar, ainda com maior atenção, dos chafarizes e fontanários junto às entradas da urbe, onde se abasteciam os moradores e se dessedentavam viajantes e rebanhos. Eram tempos em que Portugal e Espanha vestiam literalmente a Europa do Norte, vendendo cara a sua lã.

O Baixo Alentejo prolongava o circuito da Meseta, a poderosa organização dos produtores de gado em Castela, e, durante os movimentos da transumância, a Beja afluíam muitos rebanhos.

Daí a construção de notáveis chafarizes, alvo da visita que se inicia às 15h00, uma iniciativa em parceria com a Empresa Municipal de Água e Saneamento, guiada pelo historiador de arte José António Falcão e pelo engenheiro de recursos hídricos Rui Marreiros.

 

Pela Rota dos Pastores: as Canadas Reais

Desde a época da Reconquista que a região alentejana participou ativamente num intenso movimento de transumância com a Beira interior e outros territórios da Meseta, fundamental para a produção de lã em quantidade.

No final do Verão, os pastores conduziam os seus animais em direcção às pastagens do Sul, regressando às terras altas, de novo, na Primavera. Em toda a Península, chagaram a ser mais de três milhões de cabeças.

Com o intuito de não danificar as culturas, a circulação dos rebanhos era regulamentada por legislação especial. Utilizavam-se geralmente caminhos largos, as “canadas reais”, e o gado ia-se alimentando em terrenos baldios. Ai de quem estorvasse os pastores, pois arriscava pesados castigos, que podiam chegar à pena capital.

Beja foi um centro nevrálgico deste vasto sistema de intercâmbios e do comércio da lã (sem esquecer os produtos dela derivados, como as célebres mantas). O seu território não só dispunha de importantes efetivos pecuários, uma das principais riquezas locais, como era cruzado por diversas canadas. Isto deu azo a intensas ligações comerciais e familiares entre o Centro e o Sul. Um razoável quinhão dos excedentes da indústria têxtil de localidades como a Covilhã chegou mesmo a ser investido em terras e rebanhos alentejanos.

Esta herança comum vai ser alvo, dia 7, a partir das 9h30, de uma iniciativa, consagrada à salvaguarda da biodiversidade, que unirá alentejanos e beirões, na herdade do Monte da Ponte (Trindade).

Aqui virão pastores de oito aldeias das serras da Estrela e da Gardunha, para, com os seus congéneres do Sul, acompanharem um rebanho de raça autóctone ao longo de uma canada real. Da comitiva fazem parte autarcas, como o presidente da Câmara do Fundão, Paulo Fernandes, que será recebido pelo presidente de Beja, Paulo Arsénio.

Conhecer as tradições da pastorícia e do património cultural e natural que lhe está associado é o fio condutor de uma iniciativa que assinala também a apresentação pública da 36ª edição da Ovibeja, que tem por tema as alterações climáticas.

Em pleno campo, vai ser possível aprender a tosquiar animais como se fazia no tempo dos nossos avós, colaborar na sua ornamentação a preceito ou degustar o ensopado de borrego, cozinhado no campo pelos próprios pastores e rematado por laranjas, à semelhança do que se fazia nas adiafas (festas rurais).

Por questões de sustentabilidade, estará vetado o uso de recipientes ou talheres de plásticos: cada um deve trazer os seus apetrechos, incluindo os tradicionais cocharros. O vinho será retirado de uma pipa; e a água, de infusas.

Esta celebração do mundo rural é organizada pelo Terras sem Sombra e pela ACOS – Associação de Agricultores do Sul com as autarquias de Beja, Fundão, Guarda e Seia, a Associação para o Desenvolvimento Integrado da Rede das Aldeias de Montanha (ADIRAM), a Associação das Freguesias da Encosta da Serra do Concelho da Guarda (ADEFES) e a Agência de Desenvolvimento Gardunha 21.

Terá como guias Claudino Matos (engenheiro zootécnico), Miguel Madeira, Helena Monteiro e Rui Conduto (médicos veterinários) e Paula Mira (arquiteta). Estarão também presentes peritos espanhóis, entre eles o medievalista Feliciano Nóvoa, de Madrid.

 

BEJA

6 de Abril
15h00 – A Cidade da Água: Chafarizes, Fontes e Poços Históricos de Beja
EMAS, R. Conde da Boavista, n.º 16, Beja

21h30 – Igreja do Convento de São Francisco
Percursos Vitais: Trios de Pierre Jalbert e Franz Schubert
The Delphi Trio
Violino Liana Bérubé
Violoncelo Michelle Kwon
Piano Jeffrey LaDeur

7 de Abril
09h30 – Pela Rota dos Pastores: Seguir as Canadas Reais
Ponto de encontro: Herdade do Monte da Ponte, E. N. 122, km 18, Trindade, Beja

 

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